Os becos do meu
inferno vão quase todos dar ao largo da fantasia, e de lá, tortuosos e
íngremes, descem para o cais da desilusão. Num vaivém de correrias, tropeçando,
empurrando, fazendo um burburinho de ensurdecer, agita-se neles o povo das
recordações, esgueiram-se os muitos eus que criei para existir e que depois,
para sobreviver, tive de ir descartando. Por vezes com a indiferença de quem abandona
um disfarce inútil, outras com pressas de malfeitor.
Nas paredes, cintilando coloridos, multiplicam-se os ecrãs onde revivem os
lugares e os rostos, dores minhas, dores alheias. Os momentos que pareceram
felizes e que o passar do tempo recobriu de incerteza e dúvida. Horas de
suplício. Horas de morte. Angústias de ontem, medos da infância, vergonhas da
mocidade, tudo se emaranha em simultâneo, o passado indistinto do presente e do
futuro, porque a tortura não conhece limites, e assim se nos impõe, omnipotente.
As ondas da mesquinhez do dia-a-dia embatem contra a muralha do cais,
iluminadas às vezes pela claridade fugaz de uma esperança, enquanto no céu
opaco ecoam trovões longínquos. Menos temerosos, esses, do que a ameaça da
espessa névoa que de súbito tudo pode afogar: os sonhos, o marulho dos
pensamentos, as résteas de luz.
Para escapar à iminência do martírio, fecho a porta atrás de mim, saio para o
mundo envolto nas aparências do que não sou. E contudo, força de hábito ou
fascínio do abismo, é para o negrume dos becos do meu inferno que
infalivelmente retorno. Umas quantas vezes ao dia. Todas as noites. Sem que me
lembre excepção.