Em Paris, a meio dos anos cinquenta, a Guerra Mundial uma recordação longínqua e o Existencialismo no auge, oferecendo saborosas previsões das liberdades que iriam chegar, a vida dava gosto, sentia-se fundo o privilégio de ser jovem, não aceitar peias à alegria de viver.
Cada geração conhece pontos altos, mas a minha tinha razões de sobra para entusiasmo e esperança: havia mundos a descobrir, liberdades a conquistar, a noção do longe e do exótico acordava sonhos, faziam-se planos de visitas à Índia, ao Japão, aos mosteiros do Tibete, aos rios da Amazónia.
Entre amores, passeios, conversas e um ou outro percalço, íamos ganhando o pão-nosso de cada dia, logo esbanjado com a descuidada alegria de quem só conhece amanhãs que cantam e se sente abençoado com sólidas amizades.
Foi então que num fim de tarde, entre recados para cafés, telefonemas a este e àquela, alarmes, urgências, aflições, nos vimos no apartamento de Nicole que, traída por Elvira, a sua paixão, cortara os pulsos e absorvera sedativos bastantes para adormecer um cavalo.
Salvou-a o feliz acaso da concierge lhe ir entregar o correio, e a presteza com que Labib, médico e amigo de nós todos correra a acudir. Éramos agora ali uns vinte ou mais e, passado o susto, Nicole livre de perigo, tínhamos comido, bebido, discutido, esquecidos do tempo, espantados quando alguém lembrou que àquela hora já “le balai”, o último metro, tinha passado, quem vivesse longe teria de se desenrascar. Mas a conversa continuou e, fora um ou outro que era vizinho, ficámos à conversa até que o sono pôde mais.
Camas havia duas: a de Nicole com lugar para mais dois, na outra cabiam também três, o resto teria de se acomodar onde calhasse. Fez-se uma rifa para a cama livre, coube a sorte a Raymond (encontram-no na página 15 de Mazagran), à doce Jacqueline e a este que assina.
Era Verão, o muito calor não consentia roupa, Jacqueline sugeriu deitar-se entre nós, e assim fez, depois de castamente nos beijar na face.
Dormimos de um sono, quando acordámos o Sol começava a baixar.