domingo, junho 12

Com o medo não se brinca

 

Os santos aguentam, pois como consta é infinita a sua paciência, mas talvez por ser frenético o dia-a-dia, todos temos momentos em que pouco é preciso para disparar o mau humor e a irritação, pôr-nos num estado em que não há lugar para sorrisos nem boas maneiras. E então, se a hora é de azar, vem ao de cima aquele outro eu que em geral mantemos aferrolhado, porque uma vez à solta diz sem travão o que até o Diabo quer esquecer.

Os que a conhecem desde sempre, dizem da Catarina que parece ter nascido para se queixar, e vêem nesse mau hábito, porque de facto mau hábito é, a causa dos seus dois divórcios e o fim da relação com o Araújo, tanto mais ser este um “banana” e, fingimento ou natureza, dar às vezes a impressão de débil mental.

De facto, só mesmo um santo teria paciência para tanto e tão permanente queixume, porque a Catarina sofre do reumatismo, de dores no ventre, pontadas no fígado, de uma opressão no peito, tremores no braço esquerdo, secura na boca, uma escoliose que constantemente se agrava...

Além desses muitos males, sofre ainda doutros como que por procuração, alerta para o que lê ou vê na televisão, sempre de pé atrás se aquele sintoma não será o que na outra noite sentiu, a mancha castanha que lhe apareceu no ventre bem pode ser cancro da pele.

Causou verdadeiro espanto a quase indiferença que mostrou com a pandemia do Covid-19. Seguiu as regras, só de longe a ouviram queixar-se, mas a ninguém confessará que foi essa a sua estrada de Damasco. É que não só, e pela primeira vez, teve um medo que não era fingimento, mas esse como que em dose dupla, imaginando-se a morrer asfixiada nos CI.

Desde então continua com as queixinhas, e ninguém verá diferença com a Catarina de antigamente, mas ela sabe por demais que é pura comédia, e que com o verdadeiro medo não se brinca.