"Sobre muitas das recordações da minha infância continua a pesar essa mistura de alegria descuidada e entusiasmo, quase sempre seguida de uma humilhação, de um medo ou um perigo.
Daí talvez que o primeiro dos meus sentimentos conscientes tenha sido o de um constante estado de alerta que, contra vontade e incomodamente, se me tornaria uma segunda natureza.
O avô era a calma, o aconchego. Folheando o jornal sobre a mesa, ou sentados ambos à janela, ele levava-me mansamente a navegar pelo oceano da imaginação, desdobrando a cidade num universo. Mostrava as torres da Sé, dizia-me para olhar bem, contava em sussurros, e eu sem custo distinguia em volta o acampamento dos cruzados que esperavam transporte para a Terra Santa. Via-os em algazarra a correr de lança erguida para a margem, mas subitamente o malabarismo do avô transformava as galés medievais nas caravelas das Descobertas, construídas ali perto nos estaleiros de Massarelos, e íamos nelas a caminho da Índia, sofrendo fome e doenças, naufrágios, até que apercebíamos aliviados uma costa toda de palmeiras, palácios e areia branca.
Tão depressa passeávamos pelas ruas de Goa ou de Calcutá, por entre gente vestida de sedas coloridas, admirando templos dourados, elefantes, tigres em jaulas, como já ele, virando as páginas do tempo e do espaço, nos punha a bordo do lugre de quatro mastros que ancorado ali em frente dava a impressão de que o poderíamos tocar, enorme, todo iluminado, à espera da enchente para ir de viagem.
Icebergs, pescadores solitários na imensidão do mar, auroras polares. Florestas tropicais e rios majestosos. Himalaias. Metrópoles. Exércitos. Castelos onde moravam reis tenebrosos como Ivan da Rússia, o Terrível, ou o nosso Pedro I, o Cru, que aos condenados mandava arrancar o coração pelas costas. A Grécia de Homero e Alexandre Magno, o Egipto dos faraós, as batalhas da Flandres... Maravilhoso caleidoscópio para o garotinho que pouco compreendendo absorvia tudo, e em cuja alma os nomes e os acontecimentos ficavam a ressoar em ecos simultaneamente íntimos e universais, tornando o mar alto, os monarcas, os animais, o nosso largo, a ponte sobre o rio, as fábricas, os carros de bois, num todo uno, eterno, belo e feliz."
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in Ernestina - Quetzal, 2001
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"No dia 8 de Maio de 2021, foi promulgada pelo Presidente da República a “Carta de Direitos Humanos na Era Digital” que estabelece um novo Direito de “protecção contra a desinformação”, e que institucionaliza e legaliza a censura, através de uma Entidade Reguladora e não dos Tribunais, de pessoas singulares ou colectivas que “produzam, reproduzam ou difundam” narrativas consideradas pelo Estado como “desinformação."