segunda-feira, dezembro 13

Um buraco


As recordações vão apagar-se, mas que impressões restam de uma viagem de dois dias e meio, dois mil cento e três quilómetros, que se repete quatro vezes por ano desde há quase uma década? Pouca coisa. 
Milagroso tempo soalheiro. O espanto de nos vermos, a minha mulher e eu, únicos hóspedes do excelente hotel Europa-Centro em Magaz de Pisuerga, cento e vinte e dois quartos, boa cozinha, sempre tão cheio que é indispensável reservar.
- La crisis! – lamenta a recepcionista .
Auto-estradas vazias, Pirinéus sem neve, mau jantar no Novotel de Poitiers. As meninas das cabines da Péage têm o sorriso, o charme e a beleza de quem estuda Dramaturgia e um dia destes é estrela. Grande contraste com as colegas do País Basco, figurantes num filme de Tarantino.
Manhã do terceiro dia. A neve e o gelo do fim-de-semana deixaram marcas no piso da auto-estrada, na faixa da direita há buracos, aqui e ali está fechada. Finalmente, a uns cinquenta quilómetros antes de Paris, pode-se circular livremente a cento e trinta à hora.
A boa distância à nossa frente vão quatro ou cinco carros, e de súbito o irreal acontece: o BMW que circulava na faixa central levanta voo, aterra no asfalto e rola umas quantas vezes, vêem-se dois corpos. Travamos. Um homem salta de um carro com o triângulo vermelho na mão e, com perigo da própria vida, pára o trânsito. Alguém corre para o SOS ali perto. Nesse instante vejo um dos corpos levantar-se, mulher de meia-idade elegante, casaco de peles. Uma outra mulher quer ampará-la, dar-lhe o braço, mas ela recusa e tira um telemóvel, começa a falar, acende um cigarro, anda para trás e para diante com o ar absorto de quem entrou num café.
- Está em choque – diz o meu vizinho – Daqui a nada desmaia.
O outro corpo, um homem, continua imóvel, escorre dele sangue que faz uma pequena poça. O carro parece ter sido prensado, as rodas foram parar à berma, não se compreende que os dois corpos não tenham sido totalmente esmagados.
Chega a Polícia, ouvem-se ambulâncias, a mulher finalmente aceitou o braço caridoso, e nós continuamos a viagem, olhos na estrada, mal ousando imaginar o que acontece quando um carro a centro e trinta encontra um buraco.
Recomeçou a nevar.