quarta-feira, fevereiro 3

Uma ilusão


Entrou nos sessenta e continua bom rapaz, dândi no vestuário, sapatos de camurça, risca na cabeleira, foulard a esconder as rugas do pescoço. Atencioso, delicado, levanta-se quando uma senhora entra, beija-lhe a mão à antiga.

Sabe um pouco de tudo, mas com esse pouco espevita uma conversa que esmorece ou um silêncio que pesa. E é serviçal. Quem lhe telefona sabe que terminará com um "Se precisares dalguma coisa, manda!", mas a verdade obriga a dizer que das vezes que lhe pedi coisas miúdas – dar um recado, ir a uma livraria – sempre arranjou desculpa para se escusar.

Mas enfim, todos temos os nossos defeitos. O que com dificuldade se lhe perdoa é a cansativa febre de atirar com nomes e pretender relações. Fala-se de uma dor de garganta, logo ele anunciará o notável médico, sempre um professor, que o tratou do mesmo achaque. Acrescentando de seguida nome, sobrenome, morada, prole, parentesco, associados, por coincidência muito amigo do seu primo Alberto, o Alberto que é aparentado com a Maria João Pires. Diz alguém que o Primeiro Ministro tem família em Trás-os-Montes? Ele sabe onde e os nomes, a profissão, com quem casaram, os negócios que têm. Mário Soares? Conhece o Mário há uma vida! Foram unha com carne no tempo da Oposição. "Vocês de certeza se lembram. Estivemos juntos em reuniões. Estivemos juntos em Paris! E na Alemanha, quando se fundou o PS".

Os menos caridosos irritam-se. Eu compreendo-o. A sua vida sempre foi de aparências, uma ilusão que criou para sobreviver, um acto de mágica.