É uma vergonha. Ou melhor: são duas vergonhas, e não adianta esconder. Confesso já. Mesmo que não me livre do peso, fica o consolo de ter demonstrado carácter.
Primeira vergonha: tenho uma coisa com Mónica Marques. Tentarei explicar adiante as circunstâncias que a originaram, tanto mais bizarras quanto eu nada sei da pessoa.
Referir a segunda vergonha dói mais ainda: daqui a escassos meses faço oitenta anos.
Ambos estes elementos emprestam um sabor amargo a uma situação que algures, por exemplo na Índia ou no Iémen, é corrente nos usos e sancionada pelo Livro. O proibido entre nós, o geronte que se oferece uma garota de dez anos ou doze anos, é nessas paragens coisa corriqueira, olhada até como sensível conforto da velhice.
Continuando. Entre os vinte e poucos e os quase quarenta, muito andei entre o Rio e São Paulo. Não juro que tenha sido tempo paradisíaco, mas por entre os trambolhões houve também horas de folia em que Evas, dextras nas coisas do feitiço e do candomblé, me tentaram com mais de uma maçã.
São isso episódios de meio século passado e a memória vai diluindo a lembrança dos corpos, as juras feitas. Mantém-se, mas ténue, a visão de um sorriso, uma meiguice, a luz da tarde num apartamento da Avenida Atlântica, o rosto de Donatella, enfim, momentos desses. No todo são como que acontecimentos de uma vida que, de tão agitada, hoje me parece alheia e contrasta forte com a pacatez dos meus dias.
Infelizmente, uns meses atrás, oito, para ser exacto, essa pacatez foi perturbada quando pessoa amiga, conhecedora das citadas vivências, me ofereceu um livro intitulado Transa Atlântica, acrescentando, cúmplice, que de certeza o acharia interessante.
- Marques? Do García Márquez?
- Não. Da Mónica Marques.
Desconhecia a dama, transa não era vocábulo do meu tempo, mas lá o encontrei no Houaiss, e dos significados escolhi o que melhor acompanhava as pernas nuas e a minissaia da capa.
Devo dizer que de começo estranhei e a leitura não me entusiasmou. Mas à medida que nela progredia, fui caindo de susto em assombro, menos por culpa da autora, do que pelo transtornado desejo que sempre tenho de ser personagem nas histórias doutrem. Se a coisa me atrai, em vez de ler tresleio, quando dou por mim estou enterrado até às orelhas nas reviravoltas da vida alheia. Mas desta vez exagerei mais do que costumo, fazendo do que lia o pano de fundo da minha alucinação.
Assim me vi num Éden sem passado nem futuro, só presente, abundante de festa e sol, caipirinhas, praias douradas, Mónicas púberes e menos púberes, Donatellas maduras, mulatas com o sangue de sete nações, aqui e ali um garanhão, além uma corça, acolá um doce veado.
Estava eu nesse enlevo, certo de que se iriam repetir os gozos dos meus melhores anos, quando em modo igual ao com que Vénus e Ursula Andress ("a major sex symbol of the 1960s and James Bond object of desire in Dr. No") saem das ondas, se ergueu radiante uma jovem esbelta, felina e pernilonga que, estendendo ambas as mãos ...
Os abanões da minha mulher, perguntando se me tinha dado alguma coisa – com os idosos nunca se sabe - demoraram a tirar-me do devaneio, mas por fim, fechando o livro e escondendo a capa, balbuciei que me sentia cansado.
- Leitura interessante?
Tomei o modo afectado de quem só lê a Agustina :
- Nestes modernos é sexo e mais sexo, bebida, festa... A rapariga escreve escorreito, é original e mostra talento...
- Rapariga? Conhece-la?
Com característica leviandade feminina virou-me as costas, desinteressada da resposta.
À noite terminei o livro e sonhei o resto. Desde então, quando o abro, Mónica Marques, creio que é ela, sai dentre as páginas e dá-me o braço, sussurra ao ouvido que não tenho que ir fazer oitenta anos. Venda a alma, deixe-me levar, e ela mostrará como se volta aos trinta.