segunda-feira, novembro 23

Um voo transatlântico

 

"Um dia de Abril de 1960, em Amsterdam, incapaz de suportar por mais tempo a arbitrariedade do meu chefe, demiti-me do emprego que tinha no departamento comercial da embaixada do Brasil. Depois, com os meses a passar no aguardo de uma justiça que não vinha, sem dinheiro, sem amigos, orgulhoso demais para recor­rer à Assistência Social, conheci o desespero do náufrago a quem as ondas, lenta e inexoravelmente, arrastam para o largo e a perdição.

Todos os meus dias eram sombrios, recordo a maioria das horas como asfixiantes. E porque os dois grandes jornais para que antes tinha trabalhado, um no Rio de Janeiro, o outro em São Paulo, não viam interesse em manter correspon­dente numa Holan­da onde pouco acontecia, nem me parecia viável voltar casado e com filhos para o Paris dos meus tempos de boémia, agarrei a primeira tábua a que pude deitar mão: o negócio do café.

Quando o interesse em jogo ultrapassa a capacidade de uma das partes, a fase final de cada negócio conhece a febre e a tensão dos lances de roleta. Vai ser tudo, vai ser nada. Atinge-se gradualmente o estado de irrealidade em que os desejos se transformam em certezas, todas as mensagens soam positivas, na visão predomina o cor-de-rosa. Vai ser tudo.

Para mim, nessa altura, a eventualidade de uma perda tinha-se esfumado em definitivo: o ganho futuro dependia apenas de um homem, e no começo de Outubro, quando recebi o telegrama em que ele confirmava a intenção de no Rio de Janeiro, daí a dois dias, assinar o contrato porque eu esperava, vi-me rico.

Corri a comprar bilhete, meti na mala o pouco necessário para uma rápida ida-e-volta, cheguei ao aeroporto velho de Schip­hol meia hora antes da partida do avião e, ao pagar o táxi notei com surpre­sa, mas sem receio, que me restava no bolso uma nota de dois florins e cinquenta.

Voar para o Brasil significava então aventura e luxo. Em classe turista os assentos ofereciam a largueza da "Royal Class" actual, as hospedeiras de bordo eram impecáveis de elegância e maneiras, o DC-7 em que embarquei, um colosso, tinha a robust­ez que se esperava das naves interplanetárias.

Em etapas que agora parecem curtas, parámos em Paris, em Lisbo­a, e voando sobre o Saará foi-nos servido em verdadeira por­celana um verdadeiro jantar. Ao escurecer chegámos a Dakar. Esperava-nos aí o espectáculo de algumas dezenas de cadáveres semi-carbonizados, alinhados contra a parede do edifício do aeroporto, vítimas de um avião que pouco antes aterrara durante um aguaceiro e, ultrapassando a pista, fora explodir na floresta vizinha.

Recordo que trocámos palavras de circunstância - camu­flando o pensamento "antes eles do que nós" - e nos fomos acomodar nos sofás de um salão, onde um enorme ventilador movia lentamente o ar carregado de humidade.

No outro extremo, medalhado, carrancudo, sentado a uma mesa presidencial, um funcionário francês - o Senegal gozava então apenas uma semi-independência - ia carimbando os passa­portes que um subalterno negro nos vinha pedir um a um e lhe levava.

Bebeu-se, fumou-se. Por fim as hospedeiras anunciaram que estava tudo pronto para continuarmos viagem. Não houve remé­dio senão passar mais uma vez junto dos mortos que, ainda desco­bertos e expostos à chuva, exalavam já um cheiro que nos obrigou a tapar o nariz e a correr. 

Desde Paris sentara-se junto de mim a mulher de um deputado brasileiro, faladeira incrível. Com um gravador no regaço, só parava de falar para me obrigar a ouvir a voz do homem ao pronunciar um discurso no parlamento.

- Que timbre! Você não acha? Que volume! Quando ele discursa a oposição treme!

A certa altura anunciou-me que ia retirar a maquilhagem e desapareceu por longo tempo na retrete, voltando de lá com a cabeça escondida por um véu azul.

Recostada ao meu lado, descalça, de boca aberta, adorme­cera agarrada ao gravador, aspirando e soprando o véu com uma regularidade de pêndulo. Sentado à janela, incapaz de parar o torvelinho dos pensamen­tos e dormir, eu lançava de vez em quando um olhar preocupado aos motores que, aquecidos ao rubro, cuspiam chamas azuladas. Aqui e ali, por certo inquie­tos como eu, outros colavam também a cabeça aos vidros, procu­rando devassar o negrume que nos rodeava, exorcizando com sorrisos o temor de nos sabermos desamparados sobre o oceano.

Muitas horas depois, mas ainda noite fechada, aterrámos no Recife. Embora exaustos e entorpecidos não nos deixaram sair do avião: porque vínhamos da África as autoridades sa­nitárias exigiam fazer imediatamente e ali mesmo o seu contro­le.

As portas abriram-se, entrando por elas uma lufada de ar morno e pegajoso, e dois funcionários de bata branca que, distraídos e conversando, verificaram os certificados de vacina. Completada a formalidade desapareceram pela porta junto da cabine, enquanto que pela da cauda entravam dois outros com um pulverizador às costas.

Começando de lá percor­reram metodicamente a coxia, fazen­do cair sobre nós uma densa nuvem de DDT. "Por causa da tsé-tsé e da outra bicharada", explicou alguém. Semi-asfixiados e a tossir guiaram-nos para um barracão onde, as mulheres de um lado, os homens do outro, sacudimos a roupa e tomámos um duche."

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Excerpto de Scoop in Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia -Quetzal 2011