terça-feira, novembro 24

Cartas a Eça de Queirós (2)

Caro Mestre,

Do modo como neste mundo as coisas estão a ficar restam-nos cada vez menos certezas, e estivesse isso na mão dos que governam talvez esses até ensaiassem retirar-nos a certeza de que há dia e noite, porque em muito mais e sobretudo no que respeita leis, mandamentos, proibições, restrições, estupidez, vergonha e falta dela, perigo, tudo se tornou inseguro e fluído, bizarro, ameaçador, caricato.

As coisas chegaram ao ponto em que por exemplo o Santo Padre, em vez de rezar por todos nós e a seu tempo aparecer na varanda do palácio com a clássica bênção Urbi et Orbi, constantemente é notícia no papel de activista, defensor de todas as igualdades e crítico dos ricos - como se o Istituto per le Opere di Religione, o banco do Vaticano fosse um montepio – de defensor de todas as causas agora consideradas boas, e ai do crente ou ateu que não entre no carreiro ou queira sair dele: o Santo Padre é muito deste nosso tempo, não vai gastar cera com tal defunto nem sequer excomungá-lo, atira-o simplesmente para o lado dos maus.

Desculpe o devaneio, pois a falar verdade os feitos e ditos do Santo Padre interessam-me como antigamente se dizia, menos do que a primeira camisa que vesti. Para dor de cabeça,  desconforto e raiva impotente já me sobram as consequências desta situação em que os governantes dão uma no cravo outra na ferradura, quando dão, e nos intervalos parecem baratas tontas, não se descortinando entre eles um que mereça respeito pelas decisões que toma, mostre possuir qualidades para desempenhar o cargo ou ser capaz de olhar para lá da sua  pequenez.

Comparada à sabujice destes a do seu Conde de Abranhos faz sorrir, e a respeito de estupidez mesmo ouvindo custa a acreditar e o conde fica a perder, tanto mais que além de condes temos também condessas de Abranhos, e essas esforçam-se por levar a palma. Anunciou uma que o vírus não chegaria cá porque a China é longe, e também que nas viagens de avião não há risco de que as pessoas sejam infectadas porque todas vão viradas para o mesmo lado.

Qualquer adulto que arrisque semelhantes calinadas será ouvido com a comiseração que se reserva aos muito pobres de espírito, mas isto é gente no Governo, e eu posso ironizar, chamar-lhes Abranhos, são eles e elas que me estão a tirar a liberdade, mandam a que horas posso ir à rua e quando tenho de ficar em casa, me obrigam a andar de focinheira não me vá apetecer atirar perdigotos à cara do semelhante.

Vejo agora que começa a anoitecer e francamente lhe posso confessar que receio o noticiário das oito, porque além de nada esperar de bom me sei impotente contra os Abranhos que em mim mandam.

Cordialmente seu,

JRC