Ontem à noite fui a um velório, o ritual que a cidade perdeu, mas aqui na aldeia se mantém, partilha silenciosa de medos e respeito, de dor, recordações do que poderia ter sido mas nunca foi, do que irremediavelmente nunca será, do que sonhámos e se esfumou.
Está a defunta no centro da capela e, todos anciãos, somos muitos sentados em torno, uma voz reza o terço, outras respondem. Ensimesmados, os nossos pensamentos não acompanham a litania. Os olhos perdem-se num rosto que chora, seguem o mais idoso de todos nós que, quase centenário, acaba de entrar. Erecto, digno, curva-se um instante junto do caixão.
Irá depois apertar a mão a cada um dos presentes, fará uma última vénia à defunta, e assim se despede, recusando ajuda ou companhia que o leve a casa e à solidão em que vive.
Uma mulher abraça a morta, retira o véu que lhe cobre o rosto e beija-a, sufocada de pranto, talvez a remir um pecado, talvez a chamar a memória de uma alegria para sempre perdida.
Lá fora a chuva é grossa, de tempestade.