- Ora esta! - abanava-se com o jornal, a outra mão a segurar a barriga.
Pararam à entrada porque ela não encontrava a chave, e afinal era ele que a tinha no bolso, guardada sem pensar, ao sair do carro.
- Vais ver que foi da comida. Julgas que podes abusar...
A frescura da escada. Deixou a mulher ir adiante, frenética, sempre a farejar gás, apavorada com o ladrão que um dia havia de arrombar a janela das traseiras para lhes roubar as coisas, o ouro, o quadro de Columbano.
Tinham ido à Caparica despedir-se da filha e na volta começara a sentir aquela ânsia, os joelhos fracos, um nó nos intestinos, tivera de se abaixar na valeta, antes da ponte, sem poder mais, a impressão de que rebentava.
Ao entrar na sala pousou o chapéu, desabotoou-se, tacteou o peito, o ventre, à espera da pontada, dum alarme, os dedos espetados contra o fígado. Coisa esquisita! Um mal estar vago. Do calor. Pela certa era do calor.
- Ou nervos - disse a mulher, da cozinha, como se lhe pudesse ler o pensamento.
- Que nervos? Eu não disse nada!
- Mas são nervos. Podes ter a certeza.
Esfregou as mãos suadas no lenço e, com cuidado, procurando apoio, sentou-se no divã.
- Vê se trouxeram os bilhetes.
Quis repontar porque ela, de costas, a desapertar as ligas, não lhe tinha respondido; mas de repente lembrou-se que na sexta-feira ele próprio tinha ido à agência, antes de falar com o Gomes, e depois os tinha guardado na pasta.
- Deita-te um bocado - sugeriu ela.
Acenou que não, aborrecido, a pensar que os francos a dezassete não eram baratos. E o safardana a dizer que não se arranjava, que era impossível... Os amigos da gente! Ainda por cima a história com as facturas. Mas isso ficava para a volta, não queria mais incómodos.
- Amanhã saímos cedinho.
- Ó homem! O avião é ao meio-dia!
- Vamos a horas. O António que esteja aqui às nove e meia. Ou chama-se um táxi, ainda é melhor.
O genro tinha prometido vir buscá-los às dez, dez e um quarto, que de casa ao aeroporto era um quarto de hora, ainda ficavam com tempo e retempo. E a filha a dar-lhe razão!
- Telefona-lhe.
- Daqui a nada. Agora estão na praia.
A ver se a birra lhe passava, o aflito! Não é de estranhar que tenha cólicas, sempre como uma pilha. O médico bem avisa que em certas idades... Deus nos livre!...
- Que idades?
Atrapalhada, porque não se dera conta de falar alto, ele azedo a imitá-la:
- O médico bem avisa!
- Jesus! Estava a pensar...
- A pensar morreu um burro - interrompeu-se para beber de um trago o copo com bicarbonato, continuando logo: - Não me estejas com adiamentos, pega no telefone.
A fingir que se recostava, a disfarçar, para que ela não reparasse - Ai! - a dor parecia uma faca que se lhe atravessava nas tripas, na bexiga, sabia lá! A fisgada tirava-lhe o ar, até parecia que com o bicarbonato piorara.
- Quando é que compraste este frasco?
- Que frasco?
- O do bicarbonato.
- O mês passado.
Desatou aos gritos, como se ela o tivesse querido envenenar:- Claro que está estragado! Com a humidade o bicarbonato estraga-se e vocês deixam tudo por arrolhar! Vai comprar outro.
- Ao domingo?
- A farmácia está aberta.
Quando ela saísse telefonava à Amélia, porque com a barriga assim não lhe podia ir dizer adeus. Que caraças! E tanto lhe prometi! Tentou espreitar para o quarto, a ver se a mulher se vestia, desconfiado do silêncio.
- Então?
- Bebe - ela estava ali ao lado, com um bule de chá do ervanário, não tinha dado conta de a ouvir na cozinha.
- Não quero.
Mas ela pôs-lhe a chávena na mão, ajeitou as almofadas, esperou que bebesse.
- E agora não te mexas - disse, ao mesmo tempo que do bolso do roupão tirava um crucifixo e o frasquinho de água benta. - Em nome do Pai, do Filho, do Espírito Santo.
- Tu ainda acreditas nessas coisas?
Antigamente dizia "nessas merdices", mas ela um dia, muito séria, tinha-lhe pedido que se não acreditava, ao menos tivesse respeito.
No café tinha-se feito um silêncio de troça, mas fingiu não reparar e continuou:
- A mulher tem as suas ideias, exactamente como nós. Tem os seus direitos. Quando a sociedade um dia se basear no respeito mútuo, sem diferenças, com a igualdade absoluta dos sexos...
O Gomes rebentara numa gargalhada, arrastando os outros:
- Ó Lucena! Então quem é que veste as calças?
Das outras mesa perguntavam, queriam saber, e ele estendeu as mãos para que se calassem:
- Eu explico. Nos países mais avançados a mulher é em todos os pontos igual ao homem. E se...
- Mas isto é Portugal, filho! Porque é que as suecas cá vêm no Verão? E as alemãs, hein? E as inglesas?
Entre amargo e furioso: - Dás licença? Se nós um dia chegarmos, como eu sinceramente espero...
Mas com a balbúrdia era impossível continuar, fez um gesto irritado e sentou-se, bebeu o café com aguardente de um trago, recusando ouvir o que lhe diziam.
Mais tarde, já o grupo se tinha separado, ficou um momento no passeio com o Gouveia:
- É ou não é? Outro exemplo: sou liberal, republicano, às vezes até socialista. Comigo, pois, nada de beatices. Mas admito, tenho de admitir, as crenças de cada um. A fé. Não tenho simpatia pela Igreja? Pouco importa. A Igreja existe, tem os seus santos, os seus fiéis. Respeito, que é o meu dever. A minha mulher acredita em certas coisas? Respeito...
- Ó Lucena, você desculpe. Vem ali o autocarro.
Tempo perdido. Eram uns brutinhos. Não faziam a mínima ideia, não liam um livro, não abriam um jornal.
Nessa noite, deitado com a Amélia, tinha decidido: faria uma grande viagem. Iria a Berlim, à Suécia, a Moscovo. Quando voltasse haviam de se borrar de inveja, haviam de escutá-lo. O Lucena andou por lá, o Lucena viu, o Lucena sabe...
Amélia, fatigada, revirava os olhos, ele a querer mais, mais, outra vez, incansável. "Jesus! Ainda acontece alguma!" Num desespero que lhe vinha da raiva. Esquecido da hérnia, dos anos, dos avisos do médico.
- Ai senhor Jorge! Olhe que já não posso!
Era a primeira vez que se sentia assim desde que a pusera por conta e, consolado, acariciava-lhe o ventre, ela a segurar-lhe a mão com medo das cócegas:
- Esteja quieto. Descanse.
A ver-se já embarcado, a acenar, os amigos de boca aberta. Mas seria possível? Não haveria encrencas? E os vistos?
Logo no dia seguinte tinha ido à agência de viagens: tudo dependia do passaporte. Fosse à Câmara. Claro que tinha direito a passaporte, mas tudo dependia da Polícia. Na Polícia o funcionário sorriu:
- Sim senhor, claro, porque não? Dantes havia umas restriçõezitas para certas pessoas. Mas sempre foi possível. Faça favor de assinar aqui.
- E eu a julgar!...
- Muitas vezes o desentendimentos vem daí. As pessoas não perguntam, não se informam, acreditam em boatos. Depois...
- Como é para a Rússia sempre pensei...
- Que tem a Rússia? O senhor vai a negócios, vai passear, é o seu direito. Faça favor de assinar outra vez aqui. E aqui.
Em casa foi um alarme, a mulher disse logo que não, as viagens só davam azar, se já se tinha esquecido da vez que tinham ido a Badajoz e ele, ao escorregar na rua, desmanchara um braço.
- Ó mulher! Que tem uma coisa a ver com a outra?
O genro e a filha concordavam, era uma viagem muito bonita, valia a pena, quem lhes dera!...
Ela, porém, não cedia: - E os aborrecimentos com as alfândegas, as malas abertas?
Pacientemente foram-na convencendo. Estava tudo mudado, isso já não acontecia, havia mais liberdade. Contou o que se tinha passado na Polícia, inventando, dizendo que o próprio director o tinha recebido quando soube que ele era o Lucena das Pratas, o da ourivesaria.
- E de avião é uma questão de horas.
Bufou contra a estupidez do genro, mas não adiantava, o mal estava feito, a mulher já agarrada à desculpa:
- De avião? No ar? Nem à força! Até parece que vocês me querem mal!
A filha impacientou-se e com um gesto brusco entornou o copo, riram-se muito quando a cadelinha deitou a fugir, assustada, o vinho a escorrer-lhe do lombo.
- Ó mãe! Daqui à Rússia de comboio é uma semana!
- Aonde? À Rússia?
Foi o fim. Ele tinha adoçado, que iam à Suécia, iam a Berlim, passavam primeiro por Paris. Quando já estivessem no avião é que lho dizia. Ou antes, talvez, preparando-a com muito jeito. "Damos um salto a Moscovo. Para ver." Mas estava tudo estragado.
- Com vocês não se pode contar! Pedi segredo! Era uma surpresa! - traído, batia na mesa com vontade de escavacar tudo.
Evitavam olhá-lo, a ver se o génio lhe passava e a mulher, sufocada de choro, fazia gestos para que ele acalmasse.
- Jorge! Jorge! Tantas vezes te pedi! Rezo tanto para que não te metas na política!
- Mas o que é que tem...
- Lembra-te do Sousa! E nem era verdade. Denunciaram-no.
- Ó Micas! Mas isto não tem nada a ver com a política! Pois se te digo que a própria Polícia, o director... Vamos ver os museus, os monumentos!
Ela, porém, não queria ouvi-lo. Enxugou os olhos, assoou-se, a abanar a cabeça que não, que não, fosse quem quisesse, levasse a filha, o genro - se tinham tanta vontade e achavam tão lindo! - comigo não contes.
Ficaram em silêncio, entristecidos, mas a Rosa tinha muitos anos de casa e, compreensiva, sabia aparecer no momento justo, espreitou à porta da sala a perguntar se os senhores queriam mais café.
- Nós não - disse o rapaz levantando-se. - Faz-se tarde para o cinema.
Apertou a mão do genro, beijou a filha, e enquanto a mulher os acompanhava bebeu o café, resolvido a não tocar mais no assunto. Era dar tempo ao tempo. Quando ela retornou estava a pôr a gravata.
- Onde é que vais a esta hora?
- Arejar.
Nessa noite tinha sentido a primeira pontada.
Com o correr dos meses a mulher abrandara, cedendo às razões, aceitando o avião, a ida a Berlim. Mas mais longe, não:
- Faço-te a vontade, não quero que vás sozinho por aí fora. Mas é com muito sacrifício.
Ele próprio, porém, tinha perdido o entusiasmo. Na noite da zanga tinha ido visitar a Amélia e, quando lho contou, também ela se pusera com choradeiras, temores, que se fosse para tão longe e lhe acontecesse uma desgraça nunca mais o voltava a ver, e os jornais diziam muito mal dos russos, uma gente que não respeitava nada, muito cruel.
- O meu irmão andou na guerra de Espanha e conta cada coisa!...
Enfadado mandara-a calar e ela, borralheira, abraçou-o, coçou-lhe a cabeça para que adormecesse.
No café soube-se logo: o Lucena ia viajar. Escutavam-no, uns invejosos, outros compenetrados, não se lhes ouvia um aparte.
- Só os imbecis confundem respeito com fraqueza e não compreendem que um acto, digamos, ajoelhar, tirar o chapéu diante de uma igreja, ao passar um enterro, é idêntico... É a mesma coisa que saudar a bandeira ou cantar o hino! Acto cívico? Acto religioso? Que importa? O respeito tem de ser o mesmo e aí, para muitos, é que está o dói! Não vêem mais que a ponta do próprio nariz. Mas se isto amanhã...
Alguém disse "Chut!" e olharam em volta, como se houvesse perigo. Falou-se doutra coisa.
- Quando é a partida?
- Para a semana.
- Então até às Rússias, hein?
- Não. Eu queria, mas a patroa, coitada, encheu-se de medo. E tem razão. Aquilo anda mau. Noutra altura, talvez. Ficamos por Paris.
- Dizem que em Paris é que se come, Lucena. E então cada gaja!...
- ...bem aventurado São Borba, São Gonçalo, São Tadeu bispo, protector dos aflitos.
- Ó Micas, as tuas mãos estão como gelo!
Ela entornou um pouco de água benta sobre os dedos, tocou-lhe a fronte, os lábios, as faces: - Deus Nosso Senhor te tome na Sua santa guarda.
- Amanhã por esta hora já lá estamos e fartos de estar, mas se a dor continua...
- Abençoado seja o divino Santo António - disse ela, ao mesmo tempo que abria a gaveta do aparador.
- O que é isso? - perguntou ele ao ver o embrulho.
- É uma velinha. Promessa de há muito tempo. Já que vou à farmácia aproveito, passo primeiro pela igreja. Não demoro nada.
Ao vê-la sorrir, apressada, enterneceu-se, veio-lhe um arrependimento breve das noites de boémia, das amantes, de uma ou outra vez - antigamente, no princípio de casados - em que a tinha assustado com um par de tabefes, mais vento que outra coisa. Mulher sem igual. Um poço de bondade.
Levantou-se cauteloso quando a ouviu fechar a porta, a dor a mortificá-lo em surdina, ora nas pernas, ora na barriga, depois no lado.
Embora soubesse que a criada tinha o dia de folga, gritou primeiro no corredor "Rosa! Ó Rosa!" e só então pegou no telefone, logo impaciente porque a Amélia demorava a atender, já com suspeitas e ciúmes.
- Onde é que estavas?
- A ver a televisão.
- O que queres que te traga da viagem? Um perfume?
- O que quiser.
- Amanhã, quando chegar ao aeroporto, telefono-te outra vez.
Para não a descompor desligou sem se despedir, atirando com o aparelho, irritado com aquela voz desinteressada e áspera.
Provavelmente tinha passado pelo sono, porque se sentia regelado, hirto, um mau gosto na boca. Mas no momento em que quis erguer-se a dor envolveu-o de repente, causando-lhe uma visão estranha: de um ponto alto, perto do tecto, avistava o seu próprio corpo, sem poder dizer se tinha morrido ou sonhava um pesadelo.