terça-feira, setembro 16

A pontada

 

 

- Ora esta! - abanava-se com o jornal, a outra mão a segurar a barriga.

Pararam à entrada porque ela não encontrava a chave, e afinal era ele que a tinha no bolso, guardada sem pensar, ao sair do carro.

- Vais ver que foi da comida. Julgas que podes abusar...

A frescura da escada. Deixou a mulher ir adiante, frenética, sempre a farejar gás, apavorada com o ladrão que um dia havia de arrombar a janela das traseiras para lhes roubar as coisas, o ouro, o quadro de Columbano.

Tinham ido à Caparica despedir-se da filha e na volta começara a sentir aquela ânsia, os joelhos fracos, um nó nos intestinos, tivera de se abaixar na valeta, antes da ponte, sem poder mais, a impressão de que rebentava.

Ao entrar na sala pousou o chapéu, desabotoou-se, tacteou o peito, o ventre, à espera da pontada, dum alarme, os dedos espetados contra o fígado. Coisa esquisita! Um mal estar vago. Do calor. Pela certa era do calor.

- Ou nervos - disse a mulher, da cozinha, como se lhe pudesse ler o pensamento.

- Que nervos? Eu não disse nada!

- Mas são nervos. Podes ter a certeza.

Esfregou as mãos suadas no lenço e, com cuidado, procurando apoio, sentou-se no divã.

- Vê se trouxeram os bilhetes.

Quis repontar porque ela, de costas, a desapertar as ligas, não lhe tinha respondido; mas de repente lembrou-se que na sexta-feira ele próprio tinha ido à agência, antes de falar com o Gomes, e depois os tinha guardado na pasta.

- Deita-te um bocado - sugeriu ela.

Acenou que não, aborrecido, a pensar que os francos a dezassete não eram baratos. E o safardana a dizer que não se arranja­va, que era impossível... Os amigos da gente! Ainda por cima a história com as facturas. Mas isso ficava para a volta, não queria mais incómodos.

- Amanhã saímos cedinho.

- Ó homem! O avião é ao meio-dia!

- Vamos a horas. O António que esteja aqui às nove e meia. Ou chama-se um táxi, ainda é melhor.

O genro tinha prometido vir buscá-los às dez, dez e um quarto, que de casa ao aeroporto era um quarto de hora, ainda ficavam com tempo e retempo. E a filha a dar-lhe razão!

- Telefona-lhe.

- Daqui a nada. Agora estão na praia.

A ver se a birra lhe passava, o aflito! Não é de estranhar que tenha cólicas, sempre como uma pilha. O médico bem avisa que em certas idades... Deus nos livre!...

- Que idades?

Atrapalhada, porque não se dera conta de falar alto, ele azedo a imitá-la:

- O médico bem avisa!

- Jesus! Estava a pensar...

- A pensar morreu um burro - interrompeu-se para beber de um trago o copo com bicarbonato, continuando logo: - Não me estejas com adiamentos, pega no telefone.

A fingir que se recostava, a disfarçar, para que ela não reparasse - Ai! - a dor parecia uma faca que se lhe atravessava nas tripas, na bexiga, sabia lá! A fisgada tirava-lhe o ar, até parecia que com o bicarbonato piorara.

- Quando é que compraste este frasco?

- Que frasco?

- O do bicarbonato.

- O mês passado.

Desatou aos gritos, como se ela o tivesse querido envenenar:- Claro que está estragado! Com a humidade o bicarbonato estraga-se e vocês deixam tudo por arrolhar! Vai comprar outro.

- Ao domingo?

- A farmácia está aberta.

Quando ela saísse telefonava à Amélia, porque com a barriga assim não lhe podia ir dizer adeus. Que caraças! E tanto lhe prometi! Tentou espreitar para o quarto, a ver se a mulher se vestia, desconfiado do silêncio.

- Então?

- Bebe - ela estava ali ao lado, com um bule de chá do ervanário, não tinha dado conta de a ouvir na cozinha.

- Não quero.

Mas ela pôs-lhe a chávena na mão, ajeitou as almofadas, esperou que bebesse.

- E agora não te mexas - disse, ao mesmo tempo que do bolso do roupão tirava um crucifixo e o frasquinho de água benta. - Em nome do Pai, do Filho, do Espírito Santo.

- Tu ainda acreditas nessas coisas?

Antigamente dizia "nessas merdices", mas ela um dia, muito séria, tinha-lhe pedido que se não acreditava, ao menos tivesse respeito.

 

No café tinha-se feito um silêncio de troça, mas fingiu não reparar e continuou:

- A mulher tem as suas ideias, exactamente como nós. Tem os seus direitos. Quando a sociedade um dia se basear no respeito mútuo, sem diferenças, com a igualdade absoluta dos sexos...

O Gomes rebentara numa gargalhada, arrastando os outros:

- Ó Lucena! Então quem é que veste as calças?

Das outras mesa perguntavam, queriam saber, e ele estendeu as mãos para que se calassem:

- Eu explico. Nos países mais avançados a mulher é em todos os pontos igual ao homem. E se...

- Mas isto é Portugal, filho! Porque é que as suecas cá vêm no Verão? E as alemãs, hein? E as inglesas?

Entre amargo e furioso: - Dás licença? Se nós um dia chegarmos, como eu sinceramente espero...

Mas com a balbúrdia era impossível continuar, fez um gesto irritado e sentou-se, bebeu o café com aguardente de um trago, recusando ouvir o que lhe diziam.

Mais tarde, já o grupo se tinha separado, ficou um momento no passeio com o Gouveia:

- É ou não é? Outro exemplo: sou liberal, republicano, às vezes até socialista. Comigo, pois, nada de beatices. Mas admito, tenho de admitir, as crenças de cada um. A fé. Não tenho simpatia pela Igreja? Pouco importa. A Igreja existe, tem os seus santos, os seus fiéis. Respeito, que é o meu dever. A minha mulher acredita em certas coisas? Respeito...

- Ó Lucena, você desculpe. Vem ali o autocarro.

Tempo perdido. Eram uns brutinhos. Não faziam a mínima ideia, não liam um livro, não abriam um jornal.

 

Nessa noite, deitado com a Amélia, tinha decidido: faria uma grande viagem. Iria a Berlim, à Suécia, a Moscovo. Quando voltasse haviam de se borrar de inveja, haviam de escutá-lo. O Lucena andou por lá, o Lucena viu, o Lucena sabe...

Amélia, fatigada, revirava os olhos, ele a querer mais, mais, outra vez, incansável. "Jesus! Ainda acontece alguma!" Num desespero que lhe vinha da raiva. Esquecido da hérnia, dos anos, dos avisos do médico.

- Ai senhor Jorge! Olhe que já não posso!

Era a primeira vez que se sentia assim desde que a pusera por conta e, consolado, acariciava-lhe o ventre, ela a segurar-lhe a mão com medo das cócegas:

- Esteja quieto. Descanse.

A ver-se já embarcado, a acenar, os amigos de boca aberta. Mas seria possível? Não haveria encrencas? E os vistos?

Logo no dia seguinte tinha ido à agência de viagens: tudo dependia do passaporte. Fosse à Câmara. Claro que tinha direito a passaporte, mas tudo dependia da Polícia. Na Polícia o funcionário sorriu:

- Sim senhor, claro, porque não? Dantes havia umas restriçõezitas para certas pessoas. Mas sempre foi possível. Faça favor de assinar aqui.

- E eu a julgar!...

- Muitas vezes o desentendimentos vem daí. As pessoas não perguntam, não se informam, acreditam em boatos. Depois...

- Como é para a Rússia sempre pensei...

- Que tem a Rússia? O senhor vai a negócios, vai passear, é o seu direito. Faça favor de assinar outra vez aqui. E aqui.

 

Em casa foi um alarme, a mulher disse logo que não, as viagens só davam azar, se já se tinha esquecido da vez que tinham ido a Badajoz e ele, ao escorregar na rua, desmanchara um braço.

- Ó mulher! Que tem uma coisa a ver com a outra?

O genro e a filha concordavam, era uma viagem muito bonita, valia a pena, quem lhes dera!...

Ela, porém, não cedia: - E os aborrecimentos com as alfândegas, as malas abertas?

Pacientemente foram-na convencendo. Estava tudo mudado, isso já não acontecia, havia mais liberdade. Contou o que se tinha passado na Polícia, inventando, dizendo que o próprio director o tinha recebido quando soube que ele era o Lucena das Pratas, o da ourivesaria.

- E de avião é uma questão de horas.

Bufou contra a estupidez do genro, mas não adiantava, o mal estava feito, a mulher já agarrada à desculpa:

- De avião? No ar? Nem à força! Até parece que vocês me querem mal!

A filha impacientou-se e com um gesto brusco entornou o copo, riram-se muito quando a cadelinha deitou a fugir, assustad­a, o vinho a escorrer-lhe do lombo.

- Ó mãe! Daqui à Rússia de comboio é uma semana!

- Aonde? À Rússia?

Foi o fim. Ele tinha adoçado, que iam à Suécia, iam a Berlim, passavam primeiro por Paris. Quando já estivessem no avião é que lho dizia. Ou antes, talvez, preparando-a com muito jeito. "Damos um salto a Moscovo. Para ver." Mas estava tudo estragado.

- Com vocês não se pode contar! Pedi segredo! Era uma surpresa! - traído, batia na mesa com vontade de escavacar tudo.

Evitavam olhá-lo, a ver se o génio lhe passava e a mulher, sufocada de choro, fazia gestos para que ele acalmasse.

- Jorge! Jorge! Tantas vezes te pedi! Rezo tanto para que não te metas na política!

- Mas o que é que tem...

- Lembra-te do Sousa! E nem era verdade. Denunciaram-no.

- Ó Micas! Mas isto não tem nada a ver com a política! Pois se te digo que a própria Polícia, o director... Vamos ver os museus, os monumentos!

Ela, porém, não queria ouvi-lo. Enxugou os olhos, assoou-se, a abanar a cabeça que não, que não, fosse quem quisesse, levasse a filha, o genro - se tinham tanta vontade e achavam tão lindo! - comigo não contes.

Ficaram em silêncio, entristecidos, mas a Rosa tinha muitos anos de casa e, compreensiva, sabia aparecer no momento justo, espreitou à porta da sala a perguntar se os senhores queriam mais café.

- Nós não - disse o rapaz levantando-se. - Faz-se tarde para o cinema.

Apertou a mão do genro, beijou a filha, e enquanto a mulher os acompanhava bebeu o café, resolvido a não tocar mais no assunto. Era dar tempo ao tempo. Quando ela retornou estava a pôr a gravata.

- Onde é que vais a esta hora?

- Arejar.

Nessa noite tinha sentido a primeira pontada.

 

Com o correr dos meses a mulher abrandara, cedendo às razões, aceitando o avião, a ida a Berlim. Mas mais longe, não:

- Faço-te a vontade, não quero que vás sozinho por aí fora. Mas é com muito sacrifício.

Ele próprio, porém, tinha perdido o entusiasmo. Na noite da zanga tinha ido visitar a Amélia e, quando lho contou, também ela se pusera com choradeiras, temores, que se fosse para tão longe e lhe acontecesse uma desgraça nunca mais o voltava a ver, e os jornais diziam muito mal dos russos, uma gente que não respeitava nada, muito cruel.

- O meu irmão andou na guerra de Espanha e conta cada coisa!...

Enfadado mandara-a calar e ela, borralheira, abraçou-o, coçou-lhe a cabeça para que adormecesse.

 

No café soube-se logo: o Lucena ia viajar. Escutavam-no, uns invejosos, outros compenetrados, não se lhes ouvia um aparte.

- Só os imbecis confundem respeito com fraqueza e não compreendem que um acto, digamos, ajoelhar, tirar o chapéu diante de uma igreja, ao passar um enterro, é idêntico... É a mesma coisa que saudar a bandeira ou cantar o hino! Acto cívico? Acto religioso? Que importa? O respeito tem de ser o mesmo e aí, para muitos, é que está o dói! Não vêem mais que a ponta do próprio nariz. Mas se isto amanhã...

Alguém disse "Chut!" e olharam em volta, como se houvesse perigo. Falou-se doutra coisa.

- Quando é a partida?

- Para a semana.

- Então até às Rússias, hein?

- Não. Eu queria, mas a patroa, coitada, encheu-se de medo. E tem razão. Aquilo anda mau. Noutra altura, talvez. Ficamos por Paris.

- Dizem que em Paris é que se come, Lucena. E então cada gaja!...

 

- ...bem aventurado São Borba, São Gonçalo, São Tadeu bispo, protector dos aflitos.

- Ó Micas, as tuas mãos estão como gelo!

Ela entornou um pouco de água benta sobre os dedos, tocou-lhe a fronte, os lábios, as faces: - Deus Nosso Senhor te tome na Sua santa guarda.

- Amanhã por esta hora já lá estamos e fartos de estar, mas se a dor continua...

- Abençoado seja o divino Santo António - disse ela, ao mesmo tempo que abria a gaveta do aparador.

- O que é isso? - perguntou ele ao ver o embrulho.

- É uma velinha. Promessa de há muito tempo. Já que vou à farmácia aproveito, passo primeiro pela igreja. Não demoro nada.

Ao vê-la sorrir, apressada, enterneceu-se, veio-lhe um arrependimento breve das noites de boémia, das amantes, de uma ou outra vez - antigamente, no princípio de casados - em que a tinha assustado com um par de tabefes, mais vento que outra coisa. Mulher sem igual. Um poço de bondade.

Levantou-se cauteloso quando a ouviu fechar a porta, a dor a mortificá-lo em surdina, ora nas pernas, ora na barriga, depois no lado.

Embora soubesse que a criada tinha o dia de folga, gritou primeiro no corredor "Rosa! Ó Rosa!" e só então pegou no telefone, logo impaciente porque a Amélia demorava a atender, já com suspeitas e ciúmes.

- Onde é que estavas?

- A ver a televisão.

- O que queres que te traga da viagem? Um perfume?

- O que quiser.

- Amanhã, quando chegar ao aeroporto, telefono-te outra vez.

Para não a descompor desligou sem se despedir, atirando com o aparelho, irritado com aquela voz desinteressada e áspera.

 

Provavelmente tinha passado pelo sono, porque se sentia regelado, hirto, um mau gosto na boca. Mas no momento em que quis erguer-se a dor envolveu-o de repente, causando-lhe uma visão estranha: de um ponto alto, perto do tecto, avistava o seu próprio corpo, sem poder dizer se tinha morrido ou sonhava um pesadelo.