Anos atrás, mais ou menos por este tempo, encontrava-me eu em Workum para assistir à Strontrace (“A corrida da merda”) espectáculo marítimo e folclórico que, mais pelo seu nome particular que pelo seu objectivo - a repetição de uma competição doutras épocas para o transporte de estrume entre aquela aldeia frísia e a região das tulipas - tinha despertado a minha curiosidade.
Ao nascer do sol saí do conforto do hotel para o porto, e aí, entre barcos onde tudo ainda dormia, fui dar com a tripulação de um que gentilmente me convidou a tomar o café matutino. De cócoras num espaço diminuto, escuro, umas quinze pessoas regeladas, vestidas de roupa suja e artisticamente esgarçada, partilhavam um pequeno-almoço frugal.
A conversa não era animada, mas a escolha do vocabulário denotava a excelente educação de todos. Dinheiro por certo também lhes não faltava, pois sinais dele se viam por toda a parte, e o barco, embora mais que centenário, era um modelo de boa e cuidadosa manutenção.
Intrigou-me que, para os preparativos da corrida, gente assim se sujeitasse, havia uma semana, a viver com tanto desconforto, dormindo amontoada em verdadeiros buracos onde a humidade escorria das paredes. Para a higiene de todos havia uma bacia onde mal cabiam duas mãos. A retrete era um brinquedo. A cozinha um fogareiro a petróleo sobre uma caixa.
Com rodeios, para não ferir susceptibilidades, inquiri das razões que justificavam tais sacrifícios, perguntei que vantagens lhes viriam se ganhassem o primeiro lugar.
- Nenhumas - respondeu o senhor que os capitaneava. - Uma taça, talvez. Uma medalha. Qualquer coisa no género.
- Tanto desconforto só para isso?
Alguns sorriram surpresos, um ou outro parou mesmo de sacudir as mãos entorpecidas.
- As privações, meu caro! Passar privações! É esplêndido! - disse o senhor, os olhos iluminados de entusiasmo e satisfação.
Não compreendi de imediato que aquilo fosse a sério, mas quando depois de muito discutir me dei conta de que não adiantava argumentar sobre a impudência de brincar aos pobres navegantes desprotegidos, agradeci o café e fui-me dali a ruminar desprezo e repulsa.
Evidentemente que eles, crianças grandes com tempo de sobra, dinheiro de sobra e boas intenções, estranharam a minha atitude, e por certo de forma alguma mereciam os meus maus sentimentos. A minha reacção ao fenómeno, porém, continua a ter a violência das grandes alergias.
Mal alguém começa a fazer o elogio das privações sofridas durante uma expedição de sobrevivência no Uzbequistão (com seguro contra acidentes!), numa caminhada de meses nos Andes, ou com um sorriso beato recorda o frio e a fome que quis passar na sua peregrinação a Santiago, só com esforço me contenho enquanto se não dissolve a nuvem vermelha que se me forma diante dos olhos.
Deus me livre de ser pobre, viver esfomeado e com frio, e os livre também a eles de me encontrarem então no seu caminho. Será que não têm consciência do insulto que o seu divertimento implica? Ou viverão tão alheados do mundo que os rodeia que supõem a miséria se pode imitar e que ela é para todos indolor e colorida como as imagens da tv?
Como permanecer impassível ao ler a carta que recentemente me escreveu um holandês, doido de alegria por numa aldeia de Portugal ter comprado um casebre e dois palmos de terra por dez réis de mel coado?
“Sinto-me renascer - escreve ele - agora que aqui, sem qualquer conforto nem sequer água corrente, e com paredes esburacadas (a minha casa pertencia a um mendigo) aprendo no meio de gente autêntica o que são as verdadeiras privações.”
Não me custa imaginar os rasgões da sua roupa, a cordialidade de pechisbeque, o entusiasmo de empréstimo numa vida de imitação, o gozo supremo de ter descoberto pelo menos uma verdadeira razão de existir. E a arrogância. A arrogância que nasce da certeza de só participar enquanto se deseja, de poder partir no momento em que “as verdadeiras privações” se tornam desagradáveis. Porque o pobre genuíno, esse, vive encadeado nelas e nunca lhe ocorrerá que a sua existência possa ser razão de inveja ou motivo de imitação.
Ao mesmo tempo sei que nada justifica a minha ira. Que tendo tudo, protegidos por todos os lados, embotados nos sentidos e nos sentimentos, os imitadores apenas anseiam por sentir um pouco de realidade, mesmo que seja a brincar.