quarta-feira, setembro 3

Uma grande família

 

"Porque somos uma grande família". Somos. No Natal. Mas se alguém os tira do quente esquecem, não vão, mandam os pequenos como ele, e se der sarilho é contigo. Quem quer vai? Quem não quer... Sabedoria popular uma bosta! O Zé aprende depois dos sessenta, quando aprende, os pés na soleira do Eterno.

O barbeiro dá mais uma escovadela, arrastada, pró-forma, chamando a gorjeta, quer saber se "lá em cima", hein? Disseram-lhe que o Pereira, se não for desta, mais dia menos dia…

- Onde?

- Mas houve alguma coisa? - apertam-se as mãos, a moeda cai no bolso, tilinta nas outras.

- Uma vistoria.

-Foi o que ouvi dizer, mas com a força que tem ninguém lhe mexe.

Despede-se, acena, e vai a pé, o director só lá está às quatro – Mas o que é que vou dizer? – tira o casaco, desce a Avenida, um calor que até o alcatrão derrete, fedor dos autocarros.

"Agentes Secretos em Luta de Morte na Sibéria, Colorido, Maiores de 12 Anos, Vibrante Filme de Suspense e Acção Heróica!". No Politeama.

As paredes do Alcazar arrombadas a canhão, El general Moscardó de barba à Kaizer e monóculo. O Cine-Royal a chorar, plateia nesse tempo a três mil réis, pronto a alistar-se também se a bofetada do pai – "Eu é que te dou as guerras, palerma! – não lhe tivesse mudado o rumo. E razão tinha o velho, até dizem que o Hitler também fez coisas boas. A China. Agora é morra a China, depois é viva a China. A gente sabe lá!...

- Imperial.

O empregado não responde, limpa o mármore, pergunta para dentro:
- Está aí o Mário do táxi?

As inglesas estacam à porta, hesitam, passam assustadas, ninguém as avisou,  Ó miss!, olhos revistadores, os reformados confirmam que também no tempo deles as francesas que vinham por aí… As mais das vezes nicles, garganta.

- Então essa imperial? Sai?

- Quem perguntou pelo Mário?

A beber, e quase se engasga, ocorre-lhe que na gaveta do Simões, antes de lhe dar o ataque, recibos, facturas. E não me lembrei! Ele há cada uma!

- Onde é o telefone?

Os olhos convidam-no a pagar antes de mostrarem a cabine atrás da porta. Conta o dinheiro, acrescenta cinco tostões e volta as costas.

- O senhor dá demais. Olhe que ainda empobrece.

- Pode guardar – e entre os dentes -  Saloio de merda! Não fosse por coisas dava-te um coice que até…

O outro levanta a tampa do balcão, avança: - O que é que o senhor disse?

O patrão agarra-o, leva-o de volta: - Deixa lá isso, Barbosa! Onde está o Mário?

Os fregueses entreolham-se, franzem os lábios.

- Está lá?... Cordeiro. Liga-me à secretaria, faz favor. Ó Mariazinha… O Cordeiro, filha! Sim! Chame o senhor Pinto. Uma voz esquisita? Eu?... Chefe! Lembrei-me da gaveta do Simões. Estão lá. Tenho a certeza. Foi em Julho. Antes dele ir para o hospital. Quer que volte, chefe? Já não é preciso?

Agradeceu, com vagar passou diante do balcão, parou à porta, só então acendeu o cigarro. Baforada à esquerda. A dar tempo ao filho da puta, se quisesse meças. Baforada à direita.

Nesse momento tocaram-lhe o braço e o corpo retesou-se-lhe, mas era o engraxador a pedir licença.

Rossio. Chiado. Rua do Ouro. Rossio. A mesinha da esplanada, a bica, um mar de gente…Yes, Merci, Jawhol, Yes, Tak, Merci…Procurou conhecidos que não via, desdobrou o jornal. "O cortejo saiu em direcção ao Largo do Carmo…" Estava a tempo, ia à segunda do Império. "Adultos. Technicolor. . Humor negro, branco e cor-de-rosa, num espectáculo faustoso e de sátira apimentada… Adoráveis Conspiradores c/ Dianna Rigg (a famosa Mrs. Peel da série da TV 'Os Vingadores') 18.30".

Fazia horas, bebia outra bica. Os recibos do Simões! Nunca mais se tinha lembrado dos estupores dos recibos!

Elas sentaram-se na mesa ao lado, e para que não se espantassem evitou olhar. Não precisava de bruxa, sabia, tinha de acontecer, hoje talvez! Agora! A fazer que não via o dedo que lhe ia tocar na manga, os olhos no jornal. "Conjura para matar Yasser Arafat.. Amã, 7…" Não se mexe, controlado, não olhes, não olhes, os nervos aguentam mal, o dedo hesita… Trinta anos à espera! Ó Brigitte Bardot! Ó revistas alemãs com elas na capa!

A unha roçou-lhe o braço.

- Yes?- britânico, nada de Ièsse. Yes! E cara condizente, cara de habituado àquilo, de quem deita o anzol dos olhos, elas mortinhas por ferrar. Cara de farto.

E o bijuzinho diz assim: - Oh!

Um quarto de volta na cadeira, avaliação fulminante no frente a frente. A outra é recheada, de perna curta, os cantos da boca traem um diferença de idade para mais. Escolhe, larga o sorriso - ouviu dizer e não esquece, as cobras também hipnotizam assim, com os olhos muito fixos - e atira-lhes outra vez: - Yes?

Ela sentiu, ataranta-se, estende o mapa, baixa a cabeça, de certeza com medo que aquela telepatia acerte no alvo. Se sabe o caminho para Belém. E gentil, doce, carinhosa, fache favorre, Béléme, os basbaques em volta a apreciar, trombudos, ciumentos, "estes gajos que se fazem às camones!"

Não olhes, não te rales. Mãozinha delicada, branca, femeal. Retira a dele com medo de perder as estribeiras, começar ali o que está a planear para depois do anoitecer: o fadinho, os becos sem luz, o Castelo está fechado, vamos então a Alfama! Cuidado não escorregue, estas calçadas são a desgraça dos tacões Yes. Espere. Há-de enlaçar então a cinturinha quente, requebrada.

Sem apoio o mapa cai, riem daquela sem-graça, baixam-se ao mesmo tempo e as cabeças tocam-se, ele aproveita para dizer que ninguém vai a Béléme, uma torrezita antiga, vê-se melhor da ponte, de longe até é mais bonita.

Azeda, desconfiada, a gorda ainda por cima tem ciúmes, de certeza tem, não faz caso do que ele diz, nem sequer olha, segreda qualquer coisa à companheira, que sorri, já esquiva.

Vão embora e ainda tenta, mas sem entusiasmo: - Se quiser que as acompanhe… É sempre a direito até ao rio, e no Terreiro do Paço, com o elétrico…

Ela acena que sim, mas não compreendeu, viram-lhe as costas e atravessam o Rossio.