sábado, setembro 13

Por Lisboa com Eça de Queiroz

 

Nascido na Póvoa do Varzim dos amores pecaminosos de uma jovem aristocrata com um juiz, e aí inscrito no Registo Civil como filho de pai conhecido e – caso raro, provavelmente único - de mãe incógnita, o grande escritor realista José Maria Eça de Queiroz (1845-1900) só em 1866, aos vinte e um anos, iria pela primeira vez a Lisboa.

            Entregue de ano para ano a amas, aos avôs, e a amigos da família, de forma a que a sua presença não obrigasse a revelações dolorosas que, eventualmente, poderiam causar dano à carreira do magistrado seu progenitor, o jovem Eça andou de um internato para outro, e cursou em Coimbra a Faculdade de Direito, tendo de Lisboa o mesmo conhecimento livresco e nebuloso que tinha de Paris, os focos culturais dos jovens portugueses do seu tempo.

            Instalado no quarto andar do nr. 26 do Rossio, onde os pais e os irmãos habitavam, e durante os seis anos em que aí, fora curtas ausência, ele próprio iria morar, Eça de Queiroz de tal forma absorveu a cidade que vemos presente em toda a sua obra, e nalguns dos seus romances, é deles parte essencial.

Dotado de um talento invulgar para as Letras, mordaz e elegante na ironia, precedido da fama que como estudante e boémio gozara em Coimbra, o círculo de amigos que criou em Lisboa viria a constituir a mais célebre das gerações literárias em Portugal.

            Com eles penetrou no âmago da vida da capital, travou conhecimento com as suas misérias e esplendores, e breve se lhe tornaram tão familiares as tabernas rascas e as casas de má nota do Bairro Alto e da Mouraria, como os cafés do Rossio e do Chiado, as vidas burguesas e os salões da aristocracia.

            Vestindo fatos brancos, quando a moda e o decoro exigiam o preto; de flor na lapela, para que o julgassem fútil; o monóculo entalado no olho direito, dando ao rosto um esgar sardónico, Eça de Queiroz apossou-se de Lisboa e amou-a, odiou-a, tornou-a ridícula, insultou-a, dissecou-lhe as muitas misérias e as poucas grandezas. Clamou por vezes contra ela com gritos de desespero, para que deixasse de ser a cidade apática e soturna que nesse tempo era. Fustigou-lhe o clero e os políticos, as pretensões da corte, a mesquinhice dos intelectuais, a sujidade das suas ruas, o descalabro dos monumentos.

            Curiosamente, e considerando-se ele próprio lisboeta de gema, foi em Havana e Newcastle, em Cardiff e em Paris, onde praticamente passaria o resto da sua vida, que Eça de Queiroz recriou a Lisboa da sua juventude.

A capital tinha-a ele impresso para sempre na sua alma e nos seus olhos. Andarilho impenitente, poucas ruas ou cantos da cidade continuariam a guardar  segredos para o jovem que, para melhor esconder o seu agudo sentido de observador, se disfarçava de janota e só parecia interessar-se pelo superficial.

Grande parte do enredo dos romances de Eça de Queiroz situa-se numa zona que inclui o centro da cidade, a Baixa com o Rossio, o Chiado e o Terreiro do Paço, mas passa também por Alfama e pela Mouraria, o Castelo de São Jorge, a Avenida da Liberdade (o troço desde a Praça dos Restauradores até à Praça da Alegria era então ocupado  pelo grande jardim do Passeio Público) e se estende ainda desde o Largo do Rato à Praça do Príncipe Real, o Jardim de São Pedro de Alcântara e o Bairro Alto.

Artur, um dos seus personagens provincianos[1] e provável alter-ego  chega pela primeira vez a Lisboa de madrugada, desce do comboio na estação de Santa Apolónia e toma uma caleche que o leva ao hotel: “Ia olhando avidamente as fachadas das casas, os cartazes nas esquinas, a prolongação das ruas… Teve um espanto ao ver de repente os arcos do Terreiro do Paço, o rio, mastreações de esquadras! Pela Rua da Prata, ia lendo avidamente as tabuletas. Quem viveria naquelas altas casas, cerradas ainda? Àquela hora, decerto, os jornalistas, as duquesas, dormiam, depois das agitações intelectuais e amorosas da noite… E uma felicidade exuberante encheu-lhe subitamente o peito.”

Artur hospeda-se no Hotel Espanhol, um estabelecimento de segunda categoria que havia então no nr. 156 da Rua da Prata. E ao anoitecer corre a ver o famoso Café Martinho, instalado defronte da Estação do Rossio  no prédio nr. 18 do Largo D. João da Câmara, onde actualmente funciona uma filial bancária.

Este café, “o espelho da cidade”, durou de 1846 a 1963 e era frequentado pelos intelectuais, os artistas e os políticos da época. Artur não se atreve a entrar, mas acha-o “esplêndido com a acumulação de chapéus altos entre os espelhos doirados, sob uma névoa de fumo de tabaco, no brouhaha contínuo das conversas.”

            Intimidado sobe até à Praça da Alegria e continua até à Praça do Príncipe Real, desce então até ao Jardim de São Pedro de Alcântara, onde se vai encostar às grades do miradouro. “A cidade cavava-se em baixo, no vale escuro, picado dos pontos de luz das janelas iluminadas e, na escuridão, os telhados, os edifícios, faziam um empastamento de sombras mais densas. Aquelas luzes, debaixo daqueles tectos, que fermentação de vida! Quantos amores, quantos mistérios, crimes talvez! Ali, jornalistas compunham artigos, oradores preparavam discursos, estadistas conferenciavam, mulheres aristocráticas, nas suas salas, falavam de amores e, nos pianos ricos, gemiam as cavatinas apaixonadas. Que grande, Lisboa!”

O Chiado, que de facto inclui a Rua do Carmo e a Rua Garrett e vai do Rossio até à Praça Luís de Camões, era então o centro nevrálgico da capital.

Segundo o romancista “o dever de um cidadão era subir e descer duas oun três vezes o Chiado,” acrescentando mais adiante: “o que um pequeno número de jornalistas, de políticos, de burgueses, de mundanos decide no Chiado que Portugal seja – é o que Portugal é.”

            O Chiado reunia então um número considerável de estabelecimentos  determinantes para a vida da cidade, e que Eça de Queiroz assiduamente frequentou. Alguns deles ainda existem, como a “Casa Havaneza” (Largo do Chiado 24), que era então a tabacaria chique de Lisboa e  ponto de encontro obrigatório para a elite da cidade. Hoje só tem uma, mas nesse tempo tinha seis portas, e estendia-se até à Rua Nova da Trindade.

            No nr. 100 da Rua Garrett, ocupado pela Livraria Sá da Costa, existia o importante Café Central, onde o escritor se reunia com os amigos e mais tarde faria dizer a um dos seus personagens que o linguado que lá se comia “parecia frito no céu e o (vinho de) Colares no céu engarrafado.”

            No nr. 108, o prédio do actual Hotel Borges, ficava nesse tempo o então esplendoroso Hotel Universal, palco importante no itinerário romanesco dos personagens queirozianos. O mesmo se pode dizer das Igrejas do Loreto[2] e dos Mártires, no lado oposto da rua, e da Igreja da Encarnação, fronteira a esta última. Nelas, imitando a realidade, alguns personagens escondiam os seus amores sob a capa da devoção. Ou ficavam a cavaquear na Praça Luís de Camões, discutindo talvez o horrível crime cometido no prédio número 105 da Rua das Flores, que desemboca nessa praça. O escritor aproveitaria o caso para sobre ele escrever um romance.

            Paralela a essa fica outra rua muito queiroziana, a do Alecrim. Descendo algumas dezenas de passos está-se no Largo do Quintela. Aí colocou o romancista a morada de um Conde de Abranhos, protagonista do romance com esse título, e caricatura feroz dos governantes da época.

            No mesmo largo acha-se desde 1903 a mais conhecida das estátuas de Eça de Queiroz, representando o escritor e uma figura de mulher simbolizando a Verdade. No pedestal lê-se a legenda que ele usara no seu romance “A Relíquia” (1887): ‘Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia.’[3]

Siga os passos do escritor e suba pela Rua da Misericórdia. Era numa loja dessa rua que ele comprava o papel esverdeado de trinta e cinco linhas em que gostava de escrever. Parava no número 37, para almoçar ou jantar com os amigos no restaurante Tavares, já famoso nesse tempo pelo luxo do interior. Ou iaao Largo do Carmo, ao Hotel Bragança, hoje quartel da Guarda Nacional Republicana, o grande edifício de seis andares que se vê melhor do Rossio, junto do Convento do Carmo.

            Alguns dos seus personagens nunca perdiam a missa na vizinha Igreja de São Roque, mas o autor, ateu, esse preferia seguir um pouco mais adiante, até ao número 103 da Rua da Escola Politécnica, e na Pastelaria Cister ir tomar café e saborear os pastéis de que tanto gostava. O estabelecimento data de 1838 e o autor é nele homenageado com um retrato.

            Volte para o Largo Rafael Bordalo Pinheiro. Desde há muito demolido, era aí que se encontrava o Casino e Lisboa onde, com um ciclo de conferências, Eça de Queiroz e os seus amigos iriam agitar o país.

Realizada a primeira a 22 de Maio de 1871, quatro dias depois de terminada a “semana sangrenta” da Comuna de Paris, Eça de Queiroz apareceu nela pregando a revolução socialista, mas vestido como dandy. E ironicamente, escreveria mais tarde: “É muito mais cómodo encontrarmo-nos com quem represente o proletariado, sossegadamente, na sala do Casino, do que encontrarmos o próprio proletariado mudo, taciturno, pálido de ambição ou de fome, armado de um chuço à embocadura de uma rua.”

Durante a vida inteira Eça de Queiroz manteria o hábito de se atardar  na Livraria Bertrand, na Rua Garrett número 73,a qual, fundada em 1773 e ainda hoje no mesmo local, é a mais antiga das livrarias portuguesas e uma das mais antigas da Europa.

Do mesmo modo que muitos dos seus personagens não perdia os espectáculos no Teatro São Carlos, ali a dois passos. Artur, o protagonista de A Capital, vai lá pela primeira vez com o seu amigo Melchior e chegam atrasados, já no segundo acto: “(…) Olhava a decoração, os camarotes que lhe pareciam muito distantes, a palidez dos rostos sob a luz do gás, e sentia-se envolvido numa harmonia magnífica e incompreensível  em que por vezes seguia, durante um momento, melodias delicadas que o tumulto da instrumentalização bem depressa absorvia. A magnificência orquestral, junto à riqueza social que sentia em redor, deram-lhe uma vaga opressão. Quando o pano desceu, respirou com alívio.

‘Vamos ver o gado!’ disse logo o Melchior, erguendo-se.

Depois da ópera em São Carlos era hábito chique passar pelo Grémio Literário, no número 37 da Rua Ivens, uma transversal da Rua Garrett. O clube, de que ele era sócio, data de 1846 e mantém o ambiente requintado desse tempo. Embora privado, os porteiros permitem por vezes que se faça uma rápida visita às instalações do rés do chão e à varanda, donde se tem uma vista fabulosa da cidade.

Na Rua Ivens desça as escadas da Calçada Nova de São Francisco até à Rua Nova do Almada onde no nr. 72 encontrará a Livraria Férin, estabelecida aí desde 1840 e de que Eça de Queiroz era cliente assíduo.

Depois, passando pela Rua de São Nicolau, atravesse para a Rua do Ouro, vire à direita e logo a seguir está no Terreiro do Paço.

            Pela praça deambulou o escritor, e com ele alguns dos personagens  da sua obra, umas vezes ironizando ferozmente contra os governantes, invisíveis nos seus gabinetes sobre as arcadas; outras vezes comovidos a recordar a história pátria, chorando a grandeza perdida do tempo em que as caravelas partiam dali a caminho da Índia.

            Mas finalmente, governantes e governados, políticos ou artistas, todos se juntavam a discutir e a beber no Martinho da Arcada que, fundado em 1778, é o mais antigo café de Lisboa.

            O caminho de regresso era pela Rua Augusta, talvez com uma paragem ali a dois passos, na Praça da Figueira nr. 18 B, na Pastelaria Nacional, onde se ia abastecer de doces.

Atravessando o Rossio o escritor subia então os 140 degraus que o levavam ao seu quarto andar, abria a porta da varanda, e tinha defronte a estátua de D. Pedro IV[4], sobre a qual, dirigindo-se à figura do monarca, ele um dia escreveu: “Vossa Majestade está no alto de uma coluna esguia, polida e branca como uma vela de estearina, e mostra, equilibrando-se sobre uma bola de bronze, a Carta, - ao clube do Arco do Bandeira.

 



[1] No romance A Capital. Terminado em 1878, este romance seria postumamente publicado em 1925.

[2] Conhecida também por “Igreja dos Italianos”, o templo original já aí se encontrava no séc. 13 e era da devoção dos muitos mercadores e navegantes venezianos e genoveses que então viviam em Lisboa. Tal como o conhecemos foi construído em 1676 e renovado depois do terramoto de 1755. Reconstruído em 1785 é de uma só nave com doze capelas e tem na frontaria, num nicho sobre a arquitrave, uma curiosa imagem de Nossa Senhora do Loreto, envolvida no característico manto afunilado, com o Menino nos braços em jeito de espreitar. No portal sobressaem dois anjos, ladeando o brasão pontifício, atribuído a Bernini (1598-1680). Da autoria de António Sapeiro (c. 1670-1740), os frescos e o tecto datam de 1702 e foram recentemente restaurados.

[3] A estátua original, da autoria do escultor António Teixeira Lopes (1860-1942) era em mármore branco. Repetidos actos de vandalismo levaram as autoridades a substituí-la no Verão de 2000 por uma réplica em bronze.

[4] Inúmeras vezes contada, a história não perde com a repetição: originalmente a estátua representava o imperador Maximiliano do México (1832-1867) e encontrava-se na Alfândega de Lisboa à espera de transporte, quando o imperador foi fusilado. As autoridades portuguesas aproveitaram a ocasião para a adquirir por um preço razoável e mandaram acrescentar à face rapada do arquiduque austríaco a grande barba do 28° rei de Portugal e primeiro imperador do Brasil.

O monumento, com  27,5 m de altura, foi inaugurado em 1870 e compõe-se de um pedestal onde se acham esculpidas figuras alegóricas da Justiça, Prudência, Fortaleza e Moderação, entrelaçadas por festões com os brasões das que eram nesse tempo as dezasseis principais cidades do país. Outras quatro figuras, representando a Fama, decoram a base.