terça-feira, setembro 30

Passatempo

 

Quando ao fim da tarde de sexta-feira entrei no cubículo que nos serve agora de escritório e sala de espera, parei surpreendido ao ver que Nicolas ainda não tinha ido embo­ra.

Sem me enca­rar, concentra­do a atender o telefone ao mesmo tempo que tomava notas, acenou para que eu pegas­se no ausculta­dor. Mas o calor tropical do dia e quase três horas na cadeia a assistir ao inter­ro­gatório de um clien­te preso por suspeita de assalto à mão armada, tin­ham-me deixado de rastos.

Pousei a pasta no chão, des­calcei os sapatos, tirei as peúgas e deitei-me no velho sofá de couro que está junto da porta. Quando Nico­las voltou a insistir com um gesto de urgê­nci­a, apontando o auscultador, abanei com a cabeça que não e fechei os olhos, a sua voz a martelar na minha sonolência:

            ‘...’

‘Parece-me difícil.’

       ‘...’

‘Dezasseis?’

            ‘...’

 'Dos amigos ou das amigas também não?’

            ‘...’

 ‘Nem depois?’

            ‘...’

‘Ou a Polícia, parece-me que sim.’

            ‘...’

‘A decisão não é minha, claro. Aliás, não lhe posso dizer se ele está interessa­do ou se o pode aten­der. Com o trabalho que tem neste momento acho que vai ser difíc­il. Mas vou tentar.’

            ‘...’

- Com certeza.

            ‘...’

‘Sim, sim. Antes não vejo possibilid­ade.’

            ‘...’

‘Terça-feira, vinte e dois. Às du­as? Certo. Quando o doutor Trasberg voltar falo com ele. Se por qual­quer razão não puder, então telefono e marcamos outro dia.’

            ‘...’

‘A sua secretária. Perfeitamente.’

Abri os olhos e Nicolas com um gesto pergun­tou se eu estava de acordo com a data. Acenei molemente que me era indiferente, ou que sim, pouco importava, e ele, repet­in­do a confirmar, despedi­u-se com as corte­sias habituais, pousou com exagerada calma o apa­rel­ho a mos­trar que se continha e apertou a cabeça entre as mãos num cansaço teatral:

‘Que chato!’

 ‘Quem?’

 ‘O senhor Dekker. Fabricante de mecânica de pre­cisão. Self-made man e muito orgulhoso dos seus dois mil e não sei quantos operári­os. Duas empresas aqui, uma na Alemanha, outra na Suíça. Vila em Blari­cum. Vila em Lanzaro­te. Penthouse em Miami. Foi o que me contou com extremo detal­he, antes de dizer que é pai de Alexandra, filha única, dezasseis anos, quase dezas­se­te. O género de rapariga que umas vezes atrai dificul­da­des ou então, quando se começa a abor­recer, simplesmente as cria.

‘Madame Dekker, pari­siense de na­scença, em lágrimas, diz que ne comprends pas. A­lexandra tem tudo: dinheiro, cavalos, liber­dade, uns cheirin­hos de frutos proibi­dos quando lhe apetece - o papá não foi concreto, mas refe­riu os perigos que a juventu­de hoje em dia corre. Fins-de-semana em Paris ou Nice, conforme a es­tação, com uma avó rica e excê­ntr­ica que a estra­ga. Más notas no liceu.’

Nicolas vira a página do bloco:

‘Há coisa de um mês deixou de aparecer em casa, mas de vez em quando telefona a dizer que ninguém se aflija, tudo vai bem, e que nos tempos mais próximos não tem intenção de voltar à rotina doméstica. Que talvez acabe por fazer aquela peregri­nação à Índia de que tantas vezes tinha falado. Ou ao Nepal. Ou ao Tibet. O senhor Dekker não sabe bem, ou não se lembra, diz que tem difi­cul­dade em fixar nomes exóticos. Em todo o caso em di­recção ao Extre­mo Oriente.

Maman aventou a ideia de contratar um detective privado, mas o papá é em absolu­to contra. Porque seria desastro­so para o negóci­o. Iam logo correr boatos e os jor­nais começavam a escrever aquelas histórias do costu­me. Como o grosso da sua clientela é avesso, mesmo indi­rec­ta­mente, mesmo remotamen­te, a ver os seus nomes badala­dos em con­sonância com tudo o que seja negativo, que cheire a escândalo ou problema, desas­tre, etc...        

‘E daí?’

‘E daí diz o senhor Dekker que uns amigos de uns amigos lhe sussurraram o nome de mister Trasberg. Que mister W.D.Tras­berg talvez fosse o homem capaz de, sem zunzuns, se encar­regar de desco­brir o paradoiro da ovel­ha tres­malha­da e con­vencê-la a regres­sar ao curral.

‘Evidentemente que a respeito do escon­derijo a mocinha não diz chus nem bus, mas os pais sup­õem-na aqui em Ams­ter­dam. Talvez numa seita. Ou com algum aman­te. Porque pelos jeitos ela hesita ainda entre os êxtases da carne e os do espírito.’

‘Com krakers nalgum prédio abandonado?’

‘Fora de questão. Caroline é impecável na higiene e quase maníaca do arrumo.’  

‘ O pai esteve na Polícia?’

‘No, sir. Maman teve um chilique quando papá sugeriu a possibilidade. Fora disso ele próprio tem consciência de que ir à Polícia ou informar os jornais vem mais ou menos a dar no mesmo.’

Um bocejo levou-me a espreguiçar, fazendo-me sentir como o cansaço parecia ter-se-me entranhado para sempre no corpo. Estendi o braço para puxar a pasta, retirei dela a agenda, e porque demorava a encon­trar a esferográfica, Nicolas atirou-me um lápis.

‘Sexta-feira, vinte e dois? Às duas?’

‘Certo.’

‘Mais?’

‘A tua irmã telefonou. Diz que volta a chamar no domingo ao fim da tarde. E tenho aqui uma meia dúzia de cartas sem inte­res­se de maior. Contas. Duas intimações. O rol do tribunal para a semana que vem. Um fax da Polícia a pedir detalhes sobre Amin Gubbah...’

‘Nicolas, por favor! Tem dó! Não quero ouvir falar desse sacana.’

‘Prenderam-no em Heathrow. Por um triz quase que escapa­va para a Nigéria. Como ainda tem aquele resto de pena para cumprir aqui, vão extraditá-lo. Queres dar uma vista de olhos?’

‘Não. A única coisa que quero é descansar. Fechas tu a loja?’

‘Fecho. Apareces para um copo?’

‘Talvez, Nikita. Mais tarde. Ou amanhã.’

‘Está bem.’ E com uma surpresa demasiado natural para não ser fingi­da:

‘Já me esque­cia: Made­leine esteve aí. Queri­a falar contigo. Vai a                NewYork uns quatro ou cinco dias e não tem quem tome conta do Maurits.’

Sem responder fiz um aceno de despedida, apanhei as minhas coisas do chão, meti as peúgas nos sapatos, e fechando a porta atrás de mim saí para o vestíbulo des­calço, a gozar a fres­cura do chão de mármore. Durante um instante hesitei se entraria ou não no meu es­critório, mas a fadiga pôde mais. E vagarosamen­te, com os sapa­tos numa mão, a pasta na outra, fazendo o possível por resistir ao sentimento de derrota que tantas vezes me toma nos fins-de-semana, comecei a subir as escadas até ao terceiro andar onde tenho o aparta­mento.

Francamente não sei se devo deitar as culpas às cir­cunstânci­as, ao meu carácter, aos meus ex-sócios, à con­corrência desen­freada dos colegas, ao divórcio ou aos signos do zodíaco. Mas com certeza não faria muita dife­rença se o soubesse, nem isso me ajudaria a resolver os problemas que se amontoam no meu dia-a-dia.

A tabuleta de cobre que, jovens e orgulhosos do nosso talento, cheios de sonhos de riqueza, ­mandámos fazer quase dez anos atrás, conti­nua a brilhar elegan­temente na porta do belo prédio no Singel. Mas talvez porque quisemos demasiado e demasiado depressa, as coisas nunca corre­ram a preceito para Trasberg, Zeltin & Diakonov - Advo­gados e Procu­radores. Aliás, desde que Wladimir Diakonov se passou para a buro­cracia de Bruxelas e Pierre Zeltin teve a sorte de casar rico em Marbella, a tabuleta deixou de corresponder à rea­lidade, pois ambos desde então nem sequer pró-forma são sócios.

É verdade também que uma tabuleta com apenas Willem Trasberg não teria o mesmo cachet, além de que uma mudança da razão social implicaria sarilhos, novas in­scriçõ­es, assentos, carim­bos, papel de carta, despesas que neste momento é melhor adiar. Por agora fecho os olhos. Vou deixan­do correr, na espe­rança de que um dia as coisas acabem por endirei­tar. E se não endireitarem, depois se verá.

Mas de vez em quando, como hoje, tenho a impressão de que o mundo na verdade me não quer. Que me puseram nele por enga­no. Então conheço as horas más em que não consigo des­trinçar se o que me aflige são as tre­vas que anunciam a de­pressão, ou os jogos de um sub­con­sciente que explora as inúmeras possibi­lidades de des­carri­lar.

Nos últimos tempos do nosso casamento, quando as coisas no escritório já corriam mal, ainda cedi às in­sistências de Madeleine para que consultasse um psiqui­atra. Mas por descrença no método ou antipatia pelo ho­mem - um cinquentão gorducho, olhos pequeninos por detrás de óculos redondos, farripas de cabelo cola­das sobre a calva - a única consulta resultou numa expe­riê­ncia desas­trosa.

Porque, como ele logo de entrada avisou, não acre­ditava no simbolismo nem na contribuição terapêutica do divã, à minha chegada indi­cou-me um sofá e sentou-se ele próprio numa apara­to­sa cadei­ra de couro preto atrás da secretária.

E começou a sonda­gem prelimi­nar do costume. Como tinha sido a minha infân­cia? Feliz. A minha juven­tude idem. Ambiente fami­liar burguês, liberal, confortável. Fiz desporto, sim senhor. E viajei, gozei, fui estu­dante apli­cado. Não sou totalmente ignoran­te das coisas da literatu­ra e da arte. Gosto de mulheres. Toco saxofone. Doenças? Nada mais grave que a constipação.

Não, os meus pais nunca me maltra­taram. Nunca abusa­ram do seu poder, nem de mim. Faleceram ambos num aciden­te, no ano em que me inscre­vi como advogado. A herança, prin­cipalmente o prédio onde vivo e tenho o escritório, faci­litou-me enormemen­te o começo da carreira.

Não, não bebo por vício. De longe a longe descui­do-me e apanho uma carraspa­na. Nas noites de Ano Novo. Às vezes nos meus anos. E para resistir à monotonia e ao desconfor­to das longas viagens de avião em classe económica. Mas não bebo para afogar af­lições, nem bebo sozinho. Nas relações sentimentais tenho tido os altos e baixos que todos conhe­cemos. Vida sexual satis­fatóri­a.

Por detrás, ou a cobrir tudo isso, uma fúria latente, desordenada, uma insidiosa insatisfação que sinto para com quase tudo, o estado do mundo e o meu próprio. Um impulso irracional para endireitar, corrigir, proteger, que talvez tivesse sido melhor canalizado se, ao terminar o curso, me tivesse feito padre em vez de entrar na advocacia.

O psiquiatra ouvia-me com um ar de comise­ração e, à força de resmungos, de comentários que me pareciam descabi­dos pela sua  ironia, tentava empurrar-me para o papel do paciente que efabula por incapacidade de avaliar o mau estado em que se encontra. E como se eu estivesse ali tal um réu para ser condenado, ou pecador de quem ele impacientemente aguarda­va arrependimento, o homem, que me conhecia há meia hora, lançou-se num sermão sobre a arrogância e a frie­za, os atalhos tortuosos por onde a psique enferma (pelos vistos a minha) perigosamente resvala, inconscien­te dos abis­mos e das quedas sem possibilidade de salvação.

A sua untuosidade inicial tinha dado lugar ao que com certe­za era tratamento de choque. Levan­tando-se de detrás da se­cretária pusera-se a meio do con­sultóri­o e, voltado para mim, pontu­ava as frases com um movimento enérgico do dedo, tentando impor-me a sua suprema­cia.

Visivelmente trans­torna­do, citando a Bíblia, o psi­qui­atra trans­for­mara-se em missionári­o. No íntimo ainda me apete­ceu sorrir, descrente de que tal coisa pudesse acon­tecer comi­go, que em busca de cura eu me encontrasse nas mãos de um doente. Des­crente também que, transtornado ou não, o homem mos­trasse ter em tão pouca conta a minha inteligência e a minha sensibi­lidade. Que em vez de me tratar como um igual se diri­gisse a mim como a um garoto desatinado, a quem o mestre, a bem ou a mal, vai ensi­nar o bom caminho. Creio que foi isso o que mais me incomodou, me fez levan­tar abrupta­mente, e com um gesto de despedida pôr fim à chara­da.

Mas mau grado o tempo passado, uns três anos, conti­nuo a recordar vivamente o momento, sobretu­do a súbita e profunda irritação que ressenti. E embora nessa altura não lhe tenha prestado uma atenção por aí além, consi­derando-a apenas um episódio carica­to, a cena tornou-se desde então uma etapa relevante - marco mi­liário soaria pretensioso - no conhe­cimen­to que, à força de saltos e trambolhões, até agora conse­gui al­cançar de mim própri­o. Como que a con­fir­mação de que, em determinadas circunstâncias, qualquer coisa no meu íntimo inevita­velmente quebra, e se traduz então num comporta­mento que nem sempre é vantajoso para os meus interesses ou para a paz do meu espírito.

Como se isso não bastasse para me complicar a vida e o trabalho, Deus deu-me de nascença uma impaciência que em geral me torna desagradável. Junte-se-lhe um carácter indivi­dualista que, na forma extrema em que me habi­ta, por vezes é fonte de satis­fação, mas em geral se levan­ta como um muro entre mim e o mundo, entre os meus actos e a vontade alheia.

                                                                 *  *  *