Quando ao fim da tarde de sexta-feira entrei no cubículo que nos serve agora de escritório e sala de espera, parei surpreendido ao ver que Nicolas ainda não tinha ido embora.
Sem me encarar, concentrado a atender o telefone ao mesmo tempo que tomava notas, acenou para que eu pegasse no auscultador. Mas o calor tropical do dia e quase três horas na cadeia a assistir ao interrogatório de um cliente preso por suspeita de assalto à mão armada, tinham-me deixado de rastos.
Pousei a pasta no chão, descalcei os sapatos, tirei as peúgas e deitei-me no velho sofá de couro que está junto da porta. Quando Nicolas voltou a insistir com um gesto de urgência, apontando o auscultador, abanei com a cabeça que não e fechei os olhos, a sua voz a martelar na minha sonolência:
‘...’
‘Parece-me difícil.’
‘...’
‘Dezasseis?’
‘...’
'Dos amigos ou das amigas também não?’
‘...’
‘Nem depois?’
‘...’
‘Ou a Polícia, parece-me que sim.’
‘...’
‘A decisão não é minha, claro. Aliás, não lhe posso dizer se ele está interessado ou se o pode atender. Com o trabalho que tem neste momento acho que vai ser difícil. Mas vou tentar.’
‘...’
- Com certeza.
‘...’
‘Sim, sim. Antes não vejo possibilidade.’
‘...’
‘Terça-feira, vinte e dois. Às duas? Certo. Quando o doutor Trasberg voltar falo com ele. Se por qualquer razão não puder, então telefono e marcamos outro dia.’
‘...’
‘A sua secretária. Perfeitamente.’
Abri os olhos e Nicolas com um gesto perguntou se eu estava de acordo com a data. Acenei molemente que me era indiferente, ou que sim, pouco importava, e ele, repetindo a confirmar, despediu-se com as cortesias habituais, pousou com exagerada calma o aparelho a mostrar que se continha e apertou a cabeça entre as mãos num cansaço teatral:
‘Que chato!’
‘Quem?’
‘O senhor Dekker. Fabricante de mecânica de precisão. Self-made man e muito orgulhoso dos seus dois mil e não sei quantos operários. Duas empresas aqui, uma na Alemanha, outra na Suíça. Vila em Blaricum. Vila em Lanzarote. Penthouse em Miami. Foi o que me contou com extremo detalhe, antes de dizer que é pai de Alexandra, filha única, dezasseis anos, quase dezassete. O género de rapariga que umas vezes atrai dificuldades ou então, quando se começa a aborrecer, simplesmente as cria.
‘Madame Dekker, parisiense de nascença, em lágrimas, diz que ne comprends pas. Alexandra tem tudo: dinheiro, cavalos, liberdade, uns cheirinhos de frutos proibidos quando lhe apetece - o papá não foi concreto, mas referiu os perigos que a juventude hoje em dia corre. Fins-de-semana em Paris ou Nice, conforme a estação, com uma avó rica e excêntrica que a estraga. Más notas no liceu.’
Nicolas vira a página do bloco:
‘Há coisa de um mês deixou de aparecer em casa, mas de vez em quando telefona a dizer que ninguém se aflija, tudo vai bem, e que nos tempos mais próximos não tem intenção de voltar à rotina doméstica. Que talvez acabe por fazer aquela peregrinação à Índia de que tantas vezes tinha falado. Ou ao Nepal. Ou ao Tibet. O senhor Dekker não sabe bem, ou não se lembra, diz que tem dificuldade em fixar nomes exóticos. Em todo o caso em direcção ao Extremo Oriente.
‘Maman aventou a ideia de contratar um detective privado, mas o papá é em absoluto contra. Porque seria desastroso para o negócio. Iam logo correr boatos e os jornais começavam a escrever aquelas histórias do costume. Como o grosso da sua clientela é avesso, mesmo indirectamente, mesmo remotamente, a ver os seus nomes badalados em consonância com tudo o que seja negativo, que cheire a escândalo ou problema, desastre, etc... ‘
‘E daí?’
‘E daí diz o senhor Dekker que uns amigos de uns amigos lhe sussurraram o nome de mister Trasberg. Que mister W.D.Trasberg talvez fosse o homem capaz de, sem zunzuns, se encarregar de descobrir o paradoiro da ovelha tresmalhada e convencê-la a regressar ao curral.
‘Evidentemente que a respeito do esconderijo a mocinha não diz chus nem bus, mas os pais supõem-na aqui em Amsterdam. Talvez numa seita. Ou com algum amante. Porque pelos jeitos ela hesita ainda entre os êxtases da carne e os do espírito.’
‘Com krakers nalgum prédio abandonado?’
‘Fora de questão. Caroline é impecável na higiene e quase maníaca do arrumo.’
‘ O pai esteve na Polícia?’
‘No, sir. Maman teve um chilique quando papá sugeriu a possibilidade. Fora disso ele próprio tem consciência de que ir à Polícia ou informar os jornais vem mais ou menos a dar no mesmo.’
Um bocejo levou-me a espreguiçar, fazendo-me sentir como o cansaço parecia ter-se-me entranhado para sempre no corpo. Estendi o braço para puxar a pasta, retirei dela a agenda, e porque demorava a encontrar a esferográfica, Nicolas atirou-me um lápis.
‘Sexta-feira, vinte e dois? Às duas?’
‘Certo.’
‘Mais?’
‘A tua irmã telefonou. Diz que volta a chamar no domingo ao fim da tarde. E tenho aqui uma meia dúzia de cartas sem interesse de maior. Contas. Duas intimações. O rol do tribunal para a semana que vem. Um fax da Polícia a pedir detalhes sobre Amin Gubbah...’
‘Nicolas, por favor! Tem dó! Não quero ouvir falar desse sacana.’
‘Prenderam-no em Heathrow. Por um triz quase que escapava para a Nigéria. Como ainda tem aquele resto de pena para cumprir aqui, vão extraditá-lo. Queres dar uma vista de olhos?’
‘Não. A única coisa que quero é descansar. Fechas tu a loja?’
‘Fecho. Apareces para um copo?’
‘Talvez, Nikita. Mais tarde. Ou amanhã.’
‘Está bem.’ E com uma surpresa demasiado natural para não ser fingida:
‘Já me esquecia: Madeleine esteve aí. Queria falar contigo. Vai a NewYork uns quatro ou cinco dias e não tem quem tome conta do Maurits.’
Sem responder fiz um aceno de despedida, apanhei as minhas coisas do chão, meti as peúgas nos sapatos, e fechando a porta atrás de mim saí para o vestíbulo descalço, a gozar a frescura do chão de mármore. Durante um instante hesitei se entraria ou não no meu escritório, mas a fadiga pôde mais. E vagarosamente, com os sapatos numa mão, a pasta na outra, fazendo o possível por resistir ao sentimento de derrota que tantas vezes me toma nos fins-de-semana, comecei a subir as escadas até ao terceiro andar onde tenho o apartamento.
Francamente não sei se devo deitar as culpas às circunstâncias, ao meu carácter, aos meus ex-sócios, à concorrência desenfreada dos colegas, ao divórcio ou aos signos do zodíaco. Mas com certeza não faria muita diferença se o soubesse, nem isso me ajudaria a resolver os problemas que se amontoam no meu dia-a-dia.
A tabuleta de cobre que, jovens e orgulhosos do nosso talento, cheios de sonhos de riqueza, mandámos fazer quase dez anos atrás, continua a brilhar elegantemente na porta do belo prédio no Singel. Mas talvez porque quisemos demasiado e demasiado depressa, as coisas nunca correram a preceito para Trasberg, Zeltin & Diakonov - Advogados e Procuradores. Aliás, desde que Wladimir Diakonov se passou para a burocracia de Bruxelas e Pierre Zeltin teve a sorte de casar rico em Marbella, a tabuleta deixou de corresponder à realidade, pois ambos desde então nem sequer pró-forma são sócios.
É verdade também que uma tabuleta com apenas Willem Trasberg não teria o mesmo cachet, além de que uma mudança da razão social implicaria sarilhos, novas inscrições, assentos, carimbos, papel de carta, despesas que neste momento é melhor adiar. Por agora fecho os olhos. Vou deixando correr, na esperança de que um dia as coisas acabem por endireitar. E se não endireitarem, depois se verá.
Mas de vez em quando, como hoje, tenho a impressão de que o mundo na verdade me não quer. Que me puseram nele por engano. Então conheço as horas más em que não consigo destrinçar se o que me aflige são as trevas que anunciam a depressão, ou os jogos de um subconsciente que explora as inúmeras possibilidades de descarrilar.
Nos últimos tempos do nosso casamento, quando as coisas no escritório já corriam mal, ainda cedi às insistências de Madeleine para que consultasse um psiquiatra. Mas por descrença no método ou antipatia pelo homem - um cinquentão gorducho, olhos pequeninos por detrás de óculos redondos, farripas de cabelo coladas sobre a calva - a única consulta resultou numa experiência desastrosa.
Porque, como ele logo de entrada avisou, não acreditava no simbolismo nem na contribuição terapêutica do divã, à minha chegada indicou-me um sofá e sentou-se ele próprio numa aparatosa cadeira de couro preto atrás da secretária.
E começou a sondagem preliminar do costume. Como tinha sido a minha infância? Feliz. A minha juventude idem. Ambiente familiar burguês, liberal, confortável. Fiz desporto, sim senhor. E viajei, gozei, fui estudante aplicado. Não sou totalmente ignorante das coisas da literatura e da arte. Gosto de mulheres. Toco saxofone. Doenças? Nada mais grave que a constipação.
Não, os meus pais nunca me maltrataram. Nunca abusaram do seu poder, nem de mim. Faleceram ambos num acidente, no ano em que me inscrevi como advogado. A herança, principalmente o prédio onde vivo e tenho o escritório, facilitou-me enormemente o começo da carreira.
Não, não bebo por vício. De longe a longe descuido-me e apanho uma carraspana. Nas noites de Ano Novo. Às vezes nos meus anos. E para resistir à monotonia e ao desconforto das longas viagens de avião em classe económica. Mas não bebo para afogar aflições, nem bebo sozinho. Nas relações sentimentais tenho tido os altos e baixos que todos conhecemos. Vida sexual satisfatória.
Por detrás, ou a cobrir tudo isso, uma fúria latente, desordenada, uma insidiosa insatisfação que sinto para com quase tudo, o estado do mundo e o meu próprio. Um impulso irracional para endireitar, corrigir, proteger, que talvez tivesse sido melhor canalizado se, ao terminar o curso, me tivesse feito padre em vez de entrar na advocacia.
O psiquiatra ouvia-me com um ar de comiseração e, à força de resmungos, de comentários que me pareciam descabidos pela sua ironia, tentava empurrar-me para o papel do paciente que efabula por incapacidade de avaliar o mau estado em que se encontra. E como se eu estivesse ali tal um réu para ser condenado, ou pecador de quem ele impacientemente aguardava arrependimento, o homem, que me conhecia há meia hora, lançou-se num sermão sobre a arrogância e a frieza, os atalhos tortuosos por onde a psique enferma (pelos vistos a minha) perigosamente resvala, inconsciente dos abismos e das quedas sem possibilidade de salvação.
A sua untuosidade inicial tinha dado lugar ao que com certeza era tratamento de choque. Levantando-se de detrás da secretária pusera-se a meio do consultório e, voltado para mim, pontuava as frases com um movimento enérgico do dedo, tentando impor-me a sua supremacia.
Visivelmente transtornado, citando a Bíblia, o psiquiatra transformara-se em missionário. No íntimo ainda me apeteceu sorrir, descrente de que tal coisa pudesse acontecer comigo, que em busca de cura eu me encontrasse nas mãos de um doente. Descrente também que, transtornado ou não, o homem mostrasse ter em tão pouca conta a minha inteligência e a minha sensibilidade. Que em vez de me tratar como um igual se dirigisse a mim como a um garoto desatinado, a quem o mestre, a bem ou a mal, vai ensinar o bom caminho. Creio que foi isso o que mais me incomodou, me fez levantar abruptamente, e com um gesto de despedida pôr fim à charada.
Mas mau grado o tempo passado, uns três anos, continuo a recordar vivamente o momento, sobretudo a súbita e profunda irritação que ressenti. E embora nessa altura não lhe tenha prestado uma atenção por aí além, considerando-a apenas um episódio caricato, a cena tornou-se desde então uma etapa relevante - marco miliário soaria pretensioso - no conhecimento que, à força de saltos e trambolhões, até agora consegui alcançar de mim próprio. Como que a confirmação de que, em determinadas circunstâncias, qualquer coisa no meu íntimo inevitavelmente quebra, e se traduz então num comportamento que nem sempre é vantajoso para os meus interesses ou para a paz do meu espírito.
Como se isso não bastasse para me complicar a vida e o trabalho, Deus deu-me de nascença uma impaciência que em geral me torna desagradável. Junte-se-lhe um carácter individualista que, na forma extrema em que me habita, por vezes é fonte de satisfação, mas em geral se levanta como um muro entre mim e o mundo, entre os meus actos e a vontade alheia.
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