Quando fui convidade para escrever sobre o Nordeste transmontano só vi prós, ceguei para os contras, pareceu-me que se por razões várias me constrangia a ideia de observar o país à lupa, para escrever sobre Trás-os-Montes bastaria a memória e olhar em redor.
Assim me pareceu, assim não é. Pouco tardou a que, feitas as contas e deitando mãos à obra, descobrisse que teria sido mais fácil refilar contra Portugal inteiro, do que ver-me a braços com a própria carne, a minha gente, as dores que escondemos, o mal e o bem que traz esta maneira transmontana, tão nossa, toda de repentes, dilacerados desde o berço entre o carinho e a fúria, a ânsia de partir e a praga de ficar, a liberdade e a prisão.
Julgando que se desprendem, mesmo aos que escapam para longe chega sempre a hora em que as raízes mostram a sua força, e lhes provam como é ilusório ir em busca doutro chão. Então, como se remissem uma culpa, já bem antes de sentir a morte vêm reservar campa no lugar onde nasceram, esquecida a jura de que nunca voltariam.
Boa gente, estranha gente, vivendo presa aos anseios dum tempo que passou. Pertenço-lhe, nela me revejo, incapaz de distinguir entre a bênção e o castigo, apenas certo de que ser transmontano, tanto como uma origem é um destino.
A mim há ocasiões em que um impulso me leva ao cemitério. Finjo que entro ali com um propósito, quando na verdade não sei o que me chama, pois sou pouco dado a expressões de pesar.
Paro nas campas dos meus, na dum ou doutro parente ou amigo, passo com respeito pelas viúvas que carpem dores sinceras, toco o ombro deste que, contrito e em lágrimas, todos os dias reza junto da campa da mulher a quem fez a vida negra.
Na minha imaginação vejo rostos, vem-me a memória de cenas, momentos, retalhos de frases, surpreendo-me a tomar parte em conversas com os que desapareceram, a perguntar-lhes se recordam isto, se ainda sabem aquilo.
Não guardo noção de quando de lá saio e demora a que as pessoas que encontro me pareçam reais. Isso que faz que, com algum desassossego, me pergunte depois quem são os mortos e se nós estamos vivos.