sábado, fevereiro 27

Para Deus

 Meu bom Deus,

 Embora crente na infinidade do vosso saber e poderio, e certo da vossa ubiquidade, eu tenho de admitir que por vezes me assalta um ligeiro sentimento de dúvida no que respeita o vosso interesse por nós e a eficiência dos vossos serviços. Problemas ficam por resolver, orações urgentes ficam por ouvir, ódios arcaicos desencadeiam guerras, os vulcões cospem fogo, a terra treme, os automobilistas perdem a cabeça, os cirurgiões distraem-se...

Antigamente podia a gente comunicar-vos os nossos anseios e exprimir-vos os nossos votos através dos intermediários que mantínheis no Vaticano, em Meca, Jerusalém, na India, no Tibet e no resto do Oriente. E o facto dessas transacções serem umas vezes  gratuitas e exigirem doutras o pagamento de emolumentos, a dádiva de oferendas ou a realização de sacrifícios, emprestava-lhes mesmo um agradável carácter de roleta, onde, como sabiamente determinasteis, a excitação vem mais do jogar e menos do resultado.

Para mal nosso, porém, duma ou doutra forma todas essas antigas delegações do vosso poder têm sofrido com a erosão do tempo e dos costumes. Qualquer intervenção do Vaticano - desfazer os sagrados laços dum matrimónio, por exemplo - custa hoje uma fortuna. Numa peregrinação a Meca ou Jerusalém somem-se as economias de anos. Quer a gente visitar a Índia em compenetrada viagem de meditação religiosa, logo o agente de viagens nos tenta impingir também uma volta pelos bordéis de Bangkok ou Hongkong.

Tal decadência e o abandono em que nos sentimos, atribuo-os eu à simples razão de que actualmente somos em excesso. Em determinada altura deve ter havido nos serviços celestiais um momento de descuido e desde aí, medindo tudo em termos de eternidade e infinito, os anjos responsáveis talvez nem ainda se tenham dado conta de como desenfreadamente nos multiplicamos. E sendo nós em tão vasto número, as nossas orações por certo vos chegam incompreensíveis e demasiado entrançadas umas nas outras para que lhes possais dar despacho. Na verdade nem mesmo de Deus se pode esperar que simultaneamente oiça os pedidos, os clamores, as aflições e os desejos secretos dos habitantes do universo, e ainda por cima se interesse pelos 5 biliões que povoam a mais pequenina das bolas planetárias.

Ciente dessas circunstâncias, e vivendo nós aqui uma época publicitária, ocorreu-me primeiro que com um anúncio eu talvez conseguisse atrair a vossa atenção. Depois decidi que não. Uma carta aberta, como esta, pareceu-me com mais probabilidade de surtir efeito, porque mesmo aí no Céu é lógico que a secção de recortes se ache menos sobrecarregada que o serviço de escuta.

Aliás o que vos quero pedir não é caso de vida ou de morte e nem sequer tem urgência, pois de há muito conheço afeições sólidas, de saúde vou bem e o que ganho cobre o que gasto. Sonhos de poder ou de glória não tenho e o mundo ainda me maravilha, a ponto que com sincero encanto continuo a olhar por vezes uma flor, uma criança, ou paro a admirar a beleza duma paisagem. O meu medo é notar que com os anos me vou tornando razoável em excesso, quase doentiamente tolerante.

É disso que quero que me guardeis, Senhor. Dai-me raivas. Mantende viva em mim a capacidade de me enfurecer. Deixai que continue a chamar às coisas pelo seu nome, a criticar sem medo, a rir de mim próprio, e livrai-me até ao último momento das aceitações que crescem com a idade.