Em meios pequenos pouco escapa do comportamento de cada um,
sobretudo o que pode ser motivo de escândalo ou chacota, já que os bons hábitos
e as boas acções são fraco material para divertimento. Aí estamos a falar de
aldeias ou lugarejos, se bem que nestes últimos o controlo social antes dê a
impressão de que as pessoas não vivem em casas separadas, mas amontoadas numa
caserna, todos ao corrente de tudo. Raivas, alegrias, desconfianças, invejas,
traques ou suspiros, sonhos, pesadelos, ambições, voluntariamente ou não tudo é
partilhado, sujeito depois às reviravoltas da cabeça de cada um e a
imprevisíveis consequências.
Revelar o nome iria levantar complicações, fiquemos então
por dizer que é um povoado em qualquer parte da faixa remota das províncias do
interior, esquecidas de Deus e do governo. São trinta e oito as almas que ainda
lá sobrevivem, e se a cada uma se podem apontar bizarrias ou parafusos a menos,
a palma vai para o Sebastião ‘Gordo’, um bazófias que em qualquer conversa
arranja maneira de falar do metro e oitenta e três da sua postura, dos cento e vinte
quilos que pesa, e se não acreditam na força que ainda tem ponham-lhe aí um saco de cimento e vão ver.
Como há pouco quem o queira ouvir raro fala desse tempo, mas
quando a Dina ainda tinha o café cansava a paciência de meio mundo a recordar
os quatro anos, três meses e dezassete dias que tinha estado na Guerra do
Ultramar, primeiro em Angola, depois na Guiné. Arregalava os olhos ao falar do
perigo das emboscadas, das minas que explodiam e fazia uma boa imitação das
rajadas de metralhadora, terminando sempre com a cena em que a sua patrulha apanhara
dois pretos, e ele, raivoso, pegando ambos pelo pescoço, os teria esganado se “o
nosso tenente” não lhe dissesse para parar.
Duas semanas atrás foi como de costume à feira da vila, e
também como de costume esperava-se que voltasse suficientemente entornado, aos
berros contra as várias injustiças que lhe fazem, a maldade do mundo, a carestia,
mas viram-no descer da carreira macambúzio, cara de poucos amigos e, surpresa,
caminhando direito em vez de ir aos bordos.
Soube-se logo que estivera no café a repisar a sua história
da patrulha, mas ao dizer que tinha agarrado dois pretos pelo pescoço, alguém o
avisou que pela lei já não se pode dizer pretos, e que até dá pena de prisão.
Ao ouvir aquilo passou-se, desatou a gritar que os gajos eram
pretos e continuaria a chamar-lhes
pretos, filho da puta nenhum o vai obrigar a dizer que não vê o que vê.