sábado, abril 20

Ainda a violência doméstica

A memória desconhece a caridade. Fosse ela bem intencionada, há alturas em que pagaríamos para que desligasse as recordações e nos deixasse no ramerrão do dia-a-dia, ocupados com as idas à farmácia, ao café, ao supermercado, as visitas à família, ou distraídos com guerras e inundações que felizmente acontecem longe. Mas não, a memória não se compadece.
É assim que há meses, ao longo das intermináveis horas de insónia, ela me obriga a recordar um amigo que, como alguns dizem com estranha certeza, Deus tem na sua eterna glória. O bizarro dessas minhas recordações é a seleção, pois embora seja inegável ter sido um homem bondoso, a memória que dele agora me vem parece usar um  filtro, escolhe apenas o episódio em que deu mostras de um terrível carácter. Desse modo e contra vontade, participo num estranho tribunal em que, pela memória, me vejo obrigado a desempenhar vários papéis, menos o de advogado de defesa.
Como desconheço exorcismo que me livre do tormento, e confio pouco nos especialistas que tratam as perturbações do cérebro, ocorreu-me que talvez pudesse encontrar remédio na clássica solução de aproveitar o caso num conto ou romance. Tentei, mas infelizmente, tal como no preparo de certos pratos de cozinha exótica, a receita era complicada, o resultado decepcionou.
Uma amiga que acredita no Purgatório e considera indiscutível o poder da Igreja, acha que a solução talvez esteja em mandar rezar missas para que, limpa de pecado, a sua alma ganhe eterno descanso e a mim seja dada a paz de que preciso.
Fosse eu crente, não precisaria do conselho e há muito teria feito a transacção, mas como o não sou receio que isto vai durar e continuarei preso à visão de  algumas manhãs de domingo: o Bernardino em pijama, pendurado na janela das traseiras, o cigarro a pender do beiço, a caçadeira na mão, olho na mira fazendo pontaria, só disparando em determinadas circunstâncias.
Exagerava ele chamando-lhe “a minha quinta”, embora fosse um bom pedaço de terreno atrás de casa, com macieiras e uma horta de que tratava com o desvelo de que os amadores são capazes. Pouco sofria com a passarada, os gatos é que lhe estragavam o plantio e por isso carregava a calibre 12, sem intenção de matar os pobres bichos, só de lhes cortar o rabo.
Nunca o conseguia, eles tinham melhores reflexos, deve ter sido essa frustração que na manhã em que pela enésima vez D. Gina lhe censurava a mania, lhe gritou antes de disparar contra ela: - Não te mato, mas corto-te um braço!