A memória desconhece a caridade. Fosse ela bem intencionada,
há alturas em que pagaríamos para que desligasse as recordações e nos deixasse
no ramerrão do dia-a-dia, ocupados com as idas à farmácia, ao café, ao supermercado,
as visitas à família, ou distraídos com guerras e inundações que felizmente acontecem
longe. Mas não, a memória não se compadece.
É assim que há meses, ao longo das intermináveis horas de
insónia, ela me obriga a recordar um amigo que, como alguns dizem com estranha
certeza, Deus tem na sua eterna glória. O bizarro dessas minhas recordações é a
seleção, pois embora seja inegável ter sido um homem bondoso, a memória que
dele agora me vem parece usar um filtro,
escolhe apenas o episódio em que deu mostras de um terrível carácter. Desse
modo e contra vontade, participo num estranho tribunal em que, pela memória, me
vejo obrigado a desempenhar vários papéis, menos o de advogado de defesa.
Como desconheço exorcismo que me livre do tormento, e confio
pouco nos especialistas que tratam as perturbações do cérebro, ocorreu-me que
talvez pudesse encontrar remédio na clássica solução de aproveitar o caso num
conto ou romance. Tentei, mas infelizmente, tal como no preparo de certos
pratos de cozinha exótica, a receita era complicada, o resultado decepcionou.
Uma amiga que acredita no Purgatório e considera indiscutível
o poder da Igreja, acha que a solução talvez esteja em mandar rezar missas para
que, limpa de pecado, a sua alma ganhe eterno descanso e a mim seja dada a paz
de que preciso.
Fosse eu crente, não precisaria do conselho e há muito teria
feito a transacção, mas como o não sou receio que isto vai durar e continuarei preso
à visão de algumas manhãs de domingo: o
Bernardino em pijama, pendurado na janela das traseiras, o cigarro a pender do
beiço, a caçadeira na mão, olho na mira fazendo pontaria, só disparando em
determinadas circunstâncias.
Exagerava ele chamando-lhe “a minha quinta”, embora fosse um
bom pedaço de terreno atrás de casa, com macieiras e uma horta de que tratava
com o desvelo de que os amadores são capazes. Pouco sofria com a passarada, os
gatos é que lhe estragavam o plantio e por isso carregava a calibre 12, sem
intenção de matar os pobres bichos, só de lhes cortar o rabo.
Nunca o conseguia, eles tinham melhores reflexos, deve ter
sido essa frustração que na manhã em que pela enésima vez D. Gina lhe censurava
a mania, lhe gritou antes de disparar contra ela: - Não te mato, mas corto-te
um braço!