Morte adiada
A distância é grande, uns duzentos metros. Sacode a
cabeça, ao mesmo tempo que abre a janela e coloca no peitoril a almofada que
servirá de apoio, a repreender-se de que só agora lhe tivesse ocorrido. Felizmente,
a automática alcança à volta dos trezentos.
Ajeita-se na cadeira, encosta o ombro à coronha. Os dedos
mal tocam a roda do visor, as linhas cruzam-se no homem que se afasta do
miradouro e se vai sentar junto do nicho
do fontenário. Vê-o debruçar-se, como se tivesse deixado cair qualquer coisa, volta
a erguer-se, muda para a sombra e fica agora de costas, meio escondido pela roseira.
As linhas ajustam-se na nuca, mas o tremor fá-las desviar
para o ombro, de novo para a nuca. Suspende o respirar, e como numa carícia deslisa
o dedo no gatilho, a sentir o metal, mas também não será desta. Tempo de sobra.
É mais pelo gozo, a excitação, até pode ser que nunca dispare.
Fica ali um bocado, o pensamento aos tropeções, por fim desmonta
a carabina e guarda-a na caixa, vai repô-la
no esconderijo que fez na adega por detrás das pipas velhas.
Para não mostrar que vem de casa, dá uma volta e entra na
vinha pelo cancelo, acena aos rapazes que andam a compor o muro, sobe para o
lagarteiro.
Liga o motor e aguarda um momento. Gosta do ronco, quando
segura as alavancas parece sua aquela força.