Este ano a Procissão das Velas fez-se sob o signo do mau humor. O padre queria-a às cinco da tarde, os fiéis a resmungar que uma Procissão das Velas com o sol alto é coisa sem jeito. Ganhou o pastor das almas, com o argumento de que, depois da nossa, ainda teria de fazer duas.
Talvez por influência desse princípio de discórdia saiu o andor da Virgem a passo desordenado, e os mais atentos repararam que imagem bateu nos galhos das amoreiras do adro. Balanceou, felizmente nada aconteceu, e lá fomos rua abaixo, rezando e cantando, velas na mão, o sol a brilhar forte.
Ao virar na capela a imagem começou aos bordos. Baixou-se o andor a tempo de evitar o pior, o cortejo parou, os fiéis continuaram a rezar e a cantar. Mas ao som das preces logo se juntou o da discórdia. Esta a dizer que a culpa era daquela, outra a jurar que bem tinha avisado, alguém a pedir que trouxessem um fio, uma voz a comentar que só um burro se lembraria de usar um atilho, aquilo pedia mas era parafusos...
O pároco continuava a rezar, indiferente ao burburinho e ao facto de que os fiéis o não seguiam. A coisa durou. Resmungou-se. Trocaram-se em sussurros culpas, palavras azedas, insultos de “Burra és tu!”.
Finalmente alguém pegou na Nossa Senhora ao colo e a procissão pôs-se em marcha atrás do andor sem imagem, o padre a acelerar, olhando o relógio.