A cerejeira em flor quase tapava a varanda, mas do lugar onde lhe tinham colocado a cadeira Paul Tissier ainda podia ver ao fundo da colina a grande curva que o Loire descrevia para lá de Nevers.Paisagem idílica, lugar de repouso de uma vida excitante a que a doença não demoraria a pôr fim.
O intelecto sempre lhe permitira relativar os dramas da existência, mas a proximidade da morte trouxera-lhe uma acuidade dos sentidos que o perturbava, por vezes tinha a impressão de que as suas vivências eram também recordações alheias.
Ao cair da noite de Ano Novo de 1928 a caravana partira de Tarfaya em direcção a Bu Craa, no sul, e dezassete dias depois chegava a Bir Moghrein. Aí, a última etapa onde lhes seria possível refazer forças e encontrar mantimentos, tinham-se abastecido do necessário para penetrar no Sahara, para lá das montanhas do Erg Iguidi. Mas passado quase um mês as pesquisas tinham-se mostrado infrutíferas e, ao contrário do que se esperara dos estudos feitos nos anos anteriores, as perfurações não tinham assinalado petróleo, nem sequer água.
Ao cair da tarde em que tinham estabelecido o acampamento, um grupo de beduínos surgira como por mágica das ondulações do deserto, levantando as suas tendas junto da duna mais próxima, aparentemente desinteressados do trabalho febril e da ruidosa aparelhagem com que furavam na areia.
No dia seguinte dois mensageiros tinham vindo anunciar a Paul Tissier que o seu senhor o esperava na tenda. Acabada a troca de cortesias foi servido o chá. Depois do chá um surpreendente couscous. Finalmente, com exasperantes circunlóquios, Abdul al-Rashid quis saber qual era o propósito daquela actividade toda; e se os estrangeiros se davam conta de que o imenso areal que se estendia dali até ao oued al-Bakr, a três dias de marcha para oriente, o herdara ele dos seus antepassados.
Mais tarde aparecera a examinar os furos, sorrindo do fio de água que por vezes corria dum cano para logo se extinguir. E o petróleo, ouviram-no explicar com uma voz seca, já outros o tinham também procurado sem sucesso, porque tal era a vontade do Profeta.
Uma noite, porém, um jacto de lama negra brotara repentinamente do deserto, mudando o sentimento de derrota em irreprimível euforia. Com os camelos mais rápidos tinham sido despachados estafetas para Bir Moghrein, onde havia telégrafo, e semanas depois o pequeno acampamento parecia uma cidade.
Sentado nos tapetes da sua tenda, lacónico e indiferente, Abdul al-Rashid recebeu um dia um general, que lhe vinha anunciar que o califa do longínquo reino de França se sentiria honrado em receber a visita do seu irmão árabe. E como nas sublimes histórias de Alf laila wa laila, as que levam mil e uma noites a contar, Abdul al-Rashid elevou-se nos ares, dando graças ao Profeta.
Paul Tissier, que lhe servia de guia, tinha-lhe mostrado palácios, florestas, campos verdes onde facilmente pastariam mil camelos. Tinha-lhe mostrado o seu Loire natal e Abdul al-Rashid compreendeu, pela primeira vez, o verdadeiro significado da palavra rio. Os rios que segundo o Corão fluíam no Paraíso eram por certo o Loire em maior e não, como antes pensara, oueds caprichosos só cheios de água depois das chuvas.
Mais tarde, defronte dos Alpes, não se impressionou. No tempo longínquo da sua peregrinação a Meca, lembrava-se de ter visto montes mais grandiosos. Mas numa volta da estrada depararam com uma maravilha: uma torrente de água cristalina, cuja espuma reflectia o sol com cintilações de diamante, despenhava-se sem cessar duma altura de duas ou três dunas.
Abdul al-Rashid pediu que parassem, apeou-se, aproximou-se do precipício onde a água desaparecia rugindo. Viram-no quedar-se extático e erguer a cabeça para o céu, recolhido em oração.
Um quarto de hora depois Paul Tissier, finalmente, decidiu aproximar-se e tocar-lhe o ombro. Não podiam demorar mais, porque corriam o risco de chegarem atrasados ao palácio onde os esperava o califa de França.
Com serenidade Abdul al-Rashid retorquiu que Allah tinha querido que ele, seu humilde servo, presenciasse um milagre; e enquanto a água continuasse a jorrar não ousaria sair dali com receio de insultar o Todo Poderoso.
Custou a convencê-lo de que a catarata existia há séculos, talvez milénios, e por fim, caminhando às arrecuas, Abdul al-Rashid voltou ao carro. Foi então que Paul Tissier o ouviu dizer as palavras que agora, próximo do seu próprio fim, lhe pareciam a confirmação de uma consoladora certeza: “Imensa e incompreensível para os homens é a bondade de Deus!”