sexta-feira, maio 1

A bondade de Deus

A cerejeira em flor quase tapava a varanda, mas do lugar onde lhe tinham colocado a cadeira Paul Tissier ainda podia ver ao fundo da colina a grande curva que o Loire des­crevia para lá de Nevers.Paisagem idílica, lugar de repouso de uma vida exci­tante a que a doença não demoraria a pôr fim.

O inte­lecto sempre lhe permi­tira relativar os dramas da exist­ênci­a, mas a proxim­idade da morte trouxera-lhe uma acuidade dos sentidos que o pertur­bava, por vezes tinha a im­pressão de que as suas vivên­cias eram também recor­dações alhei­as.

Ao cair da noite de Ano Novo de 1928 a caravana partira de Tarfaya em direcção a Bu Craa, no sul, e dezassete dias depois chegava a Bir Moghrein. Aí, a última etapa onde lhes seria possível refazer forças e encontrar manti­men­tos, tin­ham-se abastecido do necessário para penetrar no Sahara, para lá das montanhas do Erg Iguidi. Mas passado quase um mês as pesquisas tinham-se mostrado infru­tíferas e, ao contrá­rio do que se esperara dos estudos feitos nos anos anteriores, as perf­urações não tinham assinalado petróleo, nem sequer água.

Ao cair da tarde em que tinham estabele­cido o acampa­men­to, um grupo de beduínos surgira como por mágica das ondula­ções do deserto, levantando as suas tendas junto da duna mais próxima, apa­rente­mente desinte­ressados do tra­balho febril e da ruido­sa aparelhagem com que furavam na areia.

No dia seguinte dois mensageiros tinham vindo anunci­ar a Paul Tissier que o seu senhor o esperava na tenda. Acabada a troca de cortesias foi servido o chá. Depois do chá um surpreen­dente couscous. Finalmente, com exasperan­tes circunlóqui­os, Abdul al-Rashid quis saber qual era o propósito daque­la acti­vidade toda; e se os estrangeiros se davam conta de que o imenso areal que se estendia dali até ao oued al-Bakr, a três dias de marcha para oriente, o herdara ele dos seus ante­passa­dos.

Mais tarde aparecera a examinar os furos, sor­rindo do fio de água que por vezes corria dum cano para logo se extin­guir. E o petróle­o, ouviram-no explicar com uma voz seca, já outros o tinham também procurado sem sucesso, porque tal era a vontade do Profeta.

Uma noite, porém, um jacto de lama negra brotara repenti­na­mente do deserto, mudando o senti­men­to de derrota em irreprimível eufori­a. Com os camelos mais rápidos tinham sido despachados estafetas para Bir Moghre­in, onde havia telég­rafo, e semanas depois o pequeno acampamen­to parecia uma cidade.

Sentado nos tapetes da sua tenda, lacónico e indiferente, Abdul al-Rashid rece­beu um dia um general, que lhe vinha anun­ciar que o califa do longín­quo reino de França se sentiria honrado em rece­ber a visita do seu irmão árabe. E como nas subli­mes histó­ri­as de Alf laila wa laila, as que levam mil e uma noites a contar, Abdul al-Rashid elevou-se nos ares, dando graças ao Profe­ta.

Paul Tissier, que lhe servia de guia, tinha-lhe mos­trado palácios, florestas, campos verdes onde facilmente pasta­riam mil camelos. Tinha-lhe mostrado o seu Loire natal e Abdul al-Rashid compreendeu, pela primei­ra vez, o verdadeiro significado da palavra rio. Os rios que segundo o Corão fluíam no Paraíso eram por certo o Loire em maior e não, como antes pensara, oueds capri­chosos só cheios de água depois das chuvas.

Mais tarde, defronte dos Alpes, não se impressionou. No tempo longínquo da sua peregrinação a Meca, lembrava-se de ter visto montes mais gran­diosos. Mas numa volta da estrada depa­raram com uma maravilha: uma torrente de água cristali­na, cuja espuma reflectia o sol com cintilações de diaman­te, des­penhava-se sem cessar duma altura de duas ou três dunas.

Abdul al-Rashid pediu que parassem, apeou-se, aproximou-se do pre­cipí­cio onde a água desapa­recia rugin­do. Viram-no quedar-se extático e erguer a cabeça para o céu, recol­hido em oração.

Um quarto de hora depois Paul Tissier, finalmente, decidiu aproximar-se e tocar-lhe o ombro. Não podiam demorar mais, porque corriam o risco de chegarem atra­sados ao palácio onde os esperava o califa de França.

Com serenidade Abdul al-Rashid retorquiu que Allah tinha querido que ele, seu humilde servo, pre­senciasse um milagre; e enquanto a água continuasse a jorrar não ousa­ria sair dali com receio de insultar o Todo Poderoso.

Custou a convencê-lo de que a catarata existia há séculos, talvez milénios, e por fim, caminhando às arrecuas, Abdul al-Rashid voltou ao carro. Foi então que Paul Tissier o ouviu dizer as palavras que agora, próxi­mo do seu próprio fim, lhe pareciam a confir­mação de uma consoladora certe­za: “Imen­sa e incompreensível para os homens é a bondade de Deus!”

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Preguiça, oposição ao Dia do Trabalho, em vez de puxar pela cabeça e redigir um texto, abri uma pasta e tirei de lá esta história escrita há quinze anos.