quarta-feira, maio 13

"O Paço da Glória" revisitado (2)

Neste conto há ficção e factos. Na freguesia de Jolda, nos Arcos de Valdevez, onde se situa o Paço da Glória, aqueles dos mais idosos que ainda não perderam de todo a memória serão capazes de destrinçar o que nele enredei de verdade ou fantasia. A mim, que o escrevi, já não interessa uma nem outra.


LORDE WILLIAM


Lorde William B. chegou a Lisboa na Primavera de 1948, vindo de Itália num dos primeiros paquetes que depois da guerra reinicia­ram a ligação entre Génova e o Rio de Janeiro.

A sua bagagem causou pasmo, foi motivo de conversa para os estivadores que a tiraram do porão e os mirones que a viram passar. É certo que lorde William, como toda a gente, viajava com malas. Apenas muitas mais. Mas às malas seguiram-se caixas, caixotes, grades e arcas, baús, embalagens do tamanho de um quarto, tudo isso formando no cais um montão imponente.

Encheram-se três vagões. Com o que ainda sobrava de miudezas carregou-se o camião de um homem que julgou que teria de levá-las ao Estoril - dois passos - e se enfureceu ao descobrir que a viagem era para os confins do Douro, naquele tempo dois dias para a ida se as estradas estivessem boas, outros tantos de volta.

O desembarque e o despacho tinham sido rápidos e, pelo menos na aparência, sem encrencas na alfândega, a ponto que no entreposto se imaginou, e depois se afirmou, que o lorde era primo direito do rei da Inglaterra.

Viram-no apertar a mão do comandante antes de descer o portaló, seguido por um sujeito magro, de bengalinha, e dois rapazes que entraram com ele num carro preto com chofer, enquanto os guardas automaticamente se punham em sentido e lhe faziam continência.

O da bengalinha ficou para tratar do carregamento dos vagões, que se fez nessa mesma tarde. Foi ele também que, com um maço de notas como o homem nunca vira, calou as pragas do dono do camião.

Semanas depois lorde William instalou-se no solar herdado de um tio e em três anos aquilo estava transformado em palácio, o pessoal da casa passou a andar de uniforme branco, os vinhedos da quinta ganharam fama.


Nesses três anos trabalhou lá um exército de pedreiros, carpin­teiros, estucadores, electricistas, artistas que tinham deixado tudo num brinco. Contava-se, mas ninguém tinha visto, que num salão inteiro só havia instrumentos de música; que os dois andares e a torre estavam agora com mais de setenta divisões; que dos quartos de dormir do rés-do-chão, cada um com sua lareira de granito polido e tapetes de lã felpuda, bastava abrir uma porta e se descia logo para a piscina de mármore.

Havia quem tivesse espreitado de longe, mas a piscina, infelizmente, ficava escondida pelas três alas do edifício e um renque de árvores; apenas se descortinavam lá de vez em quando uns vultos a nadar, ouviam-se risos e gritos de alegria quando o vento estava de feição.


A aldeia alvoroçara-se com a chegada do lorde. Diziam-no mais rico que o falecido tio, menos sovina e, além de primo do rei da Inglaterra, parente chegado ou amigo de mais uma dúzia de sobera­nos e duques.

Na generosidade ultrapassou largamente as esperanças, mesmo as dos necessitados que, como é sabido, são sempre desmesuradas. Deu para a igreja, deu para a escola, os bombeiros, a Miseri­córdia da vila, a sopa dos pobres. Passou a custear a procissão anual e comprou mais andores. Ofereceu um altar novo ao Menino Jesus: dezanove contos daquele tempo. Os doentes e aleijados nem precisavam de pedir: o mordomo, o sujeito da bengalinha, aparecia e desembolsava para a farmácia, as cadeiras de rodas, a visita do médico. Era preciso um especialista? Vinha o especialista. O clube de futebol não tinha campo? Ele deu o terreno, pagou a terraplanagem, mandou instalar um balneário, encomendou a banda de Trancoso para a inauguração, e ainda por cima pagou a merenda e o vinho a todos.


Adoravam-no. Quando se mostrava na aldeia, raramente, ou ao vê-lo passar no carro a caminho de Lisboa, do estrangeiro, sempre com os dois mocetões loiros, as pessoas faziam-lhe vénia, os chapéus eram tirados com respeito, algumas mulheres e as crianças acenavam-lhe com a mesma maneira solene que tinham para o bispo ou para o andor da padroeira, Nossa Senhora da Boa Hora.

Claro que não era perfeito, nem toda a gente lhe ia com a cara. Nunca falava, embora se dissesse que conhecia perfeitamente a língua; e das vezes que alguém, emocionado de reconhecimento, lhe quis agarrar as mãos para beijá-las, ele logo as tinha retirado e escondido, soprando Ós!, muito corado.

Também não era bom para empenhos, nem para empregos. Na casa só trabalhavam estrangeiros e gente de fora; aos da terra dava o cavar, a vindima, algumas jornas, mas como o feitor tinha ordens para que a vez corresse por todos e a gente era muita, quem cavava não vindimava, os que ganhavam no Verão só voltavam a ganhar em Dezembro.

A maioria não achava bem. Que tivesse as suas preferências por este ou aquele, ainda compreenderiam. Se fosse forreta como o tio, um inglês ossudo que andava sempre com um xaile de mulher pelos ombros e pagava menos que os outros proprietários, também lhes pareceria dentro da ordem normal das coisas. Agora esse sistema novo - e o padre a dizer que era justo! - não agradava a ninguém: nem aos que trabalhavam, nem aos que tinham de esperar.

Resmungou-se, mas ele deu o campo de futebol e os ânimos tornaram a acalmar, a coisa esmoreceu. Tempos depois, quando a tia Ludovina morreu por não haver ambulância que a levasse ao Porto, ele mal o soube logo mandou comprar uma, os que queriam fazer exigências não acharam quem os apoiasse. Finalmente tinham-se conformado.


Por vezes ficava na quinta o ano inteiro, ou então um mês, três meses. Viam passar o carro, mas a bem dizer ninguém sabia se naquela hora ia de viagem ou a passeio, se era ida ou retorno. A generosidade é que continuava a mesma, estivesse ele ou não. Bastava o padre falar ao mordomo, este investigava, e no seu português mascavado de italiano dizia "Si, si", os pobres eram ajudados, os doentes recebiam o remédio, o "Bota e Bebe" da loja fornecia os comestíveis. Coisas maiores era preciso esperar que a "Eccellenza" estivesse.


O Manuel tinha voltado da tropa com a ideia de que não haveria de demorar muito antes de juntar o bastante para a passagem e que em dois anos, no máximo, estava no Brasil. Pagassem-lhe o justo, para ele não havia horas, peso ou ladeira. Por ser assim trabalhador contratavam-no até de longe, escolhia os patrões que queria, o Simão não se opôs quando ele lhe começou a namorar a filha mais velha. Nunca se tinha sujeitado a esperar vez para trabalhar na quinta do lorde, nem mesmo depois do feitor, na taberna, lhe ter acenado com a promessa de que se fosse respeita­dor e obediente lhe poderia suceder no cargo.

O Manuel encolheu os ombros e sorriu de maneira tão escarninha que o feitor, nessa noite, disse à mulher que não compreendia como um rapaz que pouco mais tinha que a camisa do corpo, se pudesse dar ao luxo de proceder assim.

Na taberna, os que tinham ouvido também o acharam tolo, porque o lugar de feitor na quinta, além de casa de graça, ordenado, um porco e uma pipa de vinho por ano, ainda dava muitos benefícios.

- Tem juízo, rapaz - disse alguém - o teu Brasil é aqui.

- Não trabalho p'ra panascas - rematou o Manuel.

Houve um silêncio, depois as conversas continuaram sobre outra coisa, mas com ele ninguém mais falou, só repararam que ao sair da tasca ia tão tocado que o Pinto e o Camorro lhe deram ajuda até à porta de casa.


Sabia-se, mas nunca ninguém se tinha atrevido a abrir a boca a não ser em segredo: no palácio passavam-se coisas que era melhor esquecer. O pessoal, fora o mordomo, era tudo rapaziada nova e bonita, pareciam escolhidos a dedo. Mulher não trabalhava lá nenhuma, nem mesmo na cozinha, e contava-se à boca pequena que a raiva do inglês pelas fêmeas era tão grande, que ele próprio tinha matado a cadela perdigueira que o povo lhe oferecera.

O dito do Manuel naquela noite caiu mal na aldeia e a partir desse momento só as circunstâncias e o lugar da sua morte são indiscutíveis. O resto perde-se em "contam por aí", "diz-se", "parece", mas testemunha que faça fé não há nenhuma e por isso se aceita a versão que segue.


Uma noite foi o Manuel agarrado por desconhecidos que o levaram para uma sala do palácio onde o lorde estava à espera e lhe perguntou se era verdade o que contavam, que ele tinha dito que não trabalhava para panascas. É possível que por acanhamento e susto não tenha dado resposta, mas "contam por aí", "fala-se", que lhe tiraram a roupa à força, o deitaram ao chão, prenderam com cordas, e todos os matulões da quinta, uns a seguir aos outros, o tinham enrabado tantas vezes que ele perdeu os sentidos.

O próprio lorde deu-lhe depois um copo de água, disse-lhe que se podia ir embora e não se esquecesse de contar na aldeia que também era roto.


Na semana seguinte desapareceu. Segunda-feira viram-no voltar na carreira. Repararam que mancava e tinha os olhos avermelhados. "Diz-se", "parece", que tinha estado no hospital da vila, no posto da Guarda, no tribunal, para apresentar queixa, que chegara mesmo a falar com um advogado, a ver se lhe queria tratar do caso, e este lhe respondera como os outros: "Não me meto nisso."

Dois dias depois, uns homens que andavam a trabalhar à beira-rio, viram-no lá sentado mais de uma hora. No sábado de madrugada encontraram-no enforcado no portão da quinta e a aldeia inteira correu a vê-lo, mas o mordomo deu ordens para que lhe deitassem um lençol por cima até as autoridades chegarem. A "Eccellenza" tinha saído de viagem na semana anterior e quando voltou no Outono estava tudo esquecido.

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in O Joalheiro – Editorial Escritor, Lisboa, 1998