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Ao domingo o padeiro vem às dez. Às vezes.
Almocei bem. Para aperitivo uma chamuça e um naco de queijo. Depois, língua de vitela com molho de natas e alcaparras, ervilhas, pimentos assados. De sobremesa, uma fatia de torta de chocolate. Café.
O vinho a acompanhar era de qualidade aceitável e, curioso de saber mais, rodei a garrafa para ler o contra-rótulo.
Então não é que, por esse nada, se me pôs o estômago com azedia?
Um “vinho feito com amor e com saudade?” Haverá alguém com tanto desdém pelo seu semelhante, e o imagina tão mentalmente débil que, ao beber Alandra, logo se lhe exibe na boca “a harmonia de frutos vermelhos e a elegância dos taninos finos”?
Ouvia-se o som de uma caldeira a arrastar pelo chão, outra a ser pendurada nas lárias, o bater ritmado duma tenaz num toro. Mais perto de nós, no curral, os chocalhos badalavam ligeiros se alguma ovelha se mexia, as muares davam de vez em quando uma patada inquieta, e por detrás da parede o ressonar dos porcos parecia de gente. Muito longe, a coruja continuava os seus pios, mas pouco a pouco mesmo as cobras e os ratos foram silenciando, dando a ilusão de que o mundo inteiro tinha adormecido.
Nessa grande paz ela despiu-se, beijou-me, deixou-se acariciar, zombando em murmúrios da minha pressa, ora a travar-me o ímpeto, ora a picar a minha inocência, como se o saber-me pueril aumentasse a sua excitação. Proibia um beijo, provocava uma carícia. Escapava ao meu abraço e revirando-se prendia-me entre as suas pernas, gozando a vitória, mordendo os meus lábios até perder o fôlego.
Louco de desejo como estava e bêbedo dos seus cheiros, ela facilmente podia ter feito de mim um joguete. Mas não fez. Dando-se conta de que eu não saberia prender o seu corpo ao meu, de novo me foi mansamente guiando, a mostrar como cada emoção tinha um ritmo, como o prazer se tomava em sorvos, ora animais, ora delicados.
A pele macia colava-se à minha, a fundir-se nela, enquanto os seus dedos, outras tantas garras, me perturbavam com um sentimento estranho, desencontrado, que era medo e êxtase, proibição e fascínio.
Quando o quis ofertou-me o seu corpo, mas para a dádiva e para o momento não há palavras.
Este ano a Procissão das Velas fez-se sob o signo do mau humor. O padre queria-a às cinco da tarde, os fiéis a resmungar que uma Procissão das Velas com o sol alto é coisa sem jeito. Ganhou o pastor das almas, com o argumento de que, depois da nossa, ainda teria de fazer duas.
Talvez por influência desse princípio de discórdia saiu o andor da Virgem a passo desordenado, e os mais atentos repararam que imagem bateu nos galhos das amoreiras do adro. Balanceou, felizmente nada aconteceu, e lá fomos rua abaixo, rezando e cantando, velas na mão, o sol a brilhar forte.
Ao virar na capela a imagem começou aos bordos. Baixou-se o andor a tempo de evitar o pior, o cortejo parou, os fiéis continuaram a rezar e a cantar. Mas ao som das preces logo se juntou o da discórdia. Esta a dizer que a culpa era daquela, outra a jurar que bem tinha avisado, alguém a pedir que trouxessem um fio, uma voz a comentar que só um burro se lembraria de usar um atilho, aquilo pedia mas era parafusos...
O pároco continuava a rezar, indiferente ao burburinho e ao facto de que os fiéis o não seguiam. A coisa durou. Resmungou-se. Trocaram-se em sussurros culpas, palavras azedas, insultos de “Burra és tu!”.
Finalmente alguém pegou na Nossa Senhora ao colo e a procissão pôs-se em marcha atrás do andor sem imagem, o padre a acelerar, olhando o relógio.
Mais uma vez fui ontem a São Salvador do Mundo, o lugar de peregrinação e romaria entre São João da Pesqueira e o rio Douro. É imponente aquilo, mas precisa de boas pernas quem quiser fazer a subida até às ermidas do cume. As minhas ainda aguentam. Às reviravoltas, detendo-me aqui e ali a absorver a paisagem, a espreitar nas capelinhas, a beber goles de água, e a acalmar as pulsações, lá cheguei ao alto.
Soberba paisagem onde destoava, atracado à margem esquerda, um daqueles barcos que trazem os turistas rio acima.
Comecei a descida com mais vagar e cuidado do que à ida, porque o piso, tosco como convém a um ermitério, facilita o escorregão. Sentei-me depois no carro a gozar o momento de descanso, as portas abertas para que a aragem corresse.
Foi então que os turistas chegaram. Três autocarros deles. Ingleses,franceses, alemães, de aparência todos perto dos cem, todos em avançado grau de fragilidade e osteoporose, todos pitorescamente vestidos de calções e logo a fotografar.
O cortejo passou com vagares de caracol, deteve-se junto dos primeiros degraus, e ali se ficou num extraordinário silêncio. Palavra nenhuma, nem sequer uma tosse, um pigarro.
O chofer veio para mim, forçudo, o modo e o cheiro do charro a trair o à-vontade de homem de noitadas e borga.
- Estrangeiros! – informou ele à sobreposse, o queixo a apontar o grupo imóvel. – Digo-lhe uma coisa, se se metem por ali acima vai haver mortes. A semana passada...
Mas nesse momento um colega tocou o claxon e ele virou-me as costas. Os anciãos, como se aguardassem o sinal, fizeram lentamente meia volta, as solas a arrastar, os braços afastados do corpo, dando a impressão de que temiam perder o equilíbrio.