sexta-feira, junho 24

Escapar à vida

 

Tinham-me encontrado sem sentidos no ascensor do prédio, e um mês depois, ao acordar do coma, descobri que guardara a visão, mas perdera a fala e o ouvido, o restante em paralisia.

Soará estranho, facto é que não senti medo nem me apiedei de mim próprio, surpreendi-me a aceitar com uma capacidade de indiferença que me desconhecia, assim a modos de quem, por inesperado motivo, se vê num tempo de cadeia, mas recebeu garantia segura de que não será pena perpétua.

Exótica quarentena. Desinteressado das horas, do cariz do tempo, das mudanças de estação. Distraído com os rostos que se debruçavam a examinar-me, os cuidados que recebia, surpreso de não sentir dor ou fadiga, apenas  alguma curiosidade acerca de um estado que, talvez para compensação de limitações drásticas, extremava algo que não era a capacidade de observação ou a agudeza do raciocínio, mas um modo de existência em que, sem descartá-la, à memória tivesse sido retirada a capacidade de modificar.

Exagero, mas só ligeiramente, se disser me que divertiu a perplexidade dos  polícias à paisana que, acompanhados de uma enfermeira, ao segundo dia da  "ressurreição" me vieram observar, atónitos de que a minha identidade não condissesse com a do locatário do apartamento onde eu oficialmente residia. Suponho também que, passada a surpresa, se devem ter perguntado, e gostariam que lhes explicasse, o não haver lá um único móvel, estarem as gelosias cerradas em permanência, não se descobrir indício de jamais ter sido habitado.

Deu-me a impressão de que perguntavam qual era o meu estado, provavelmente se seria possível interrogar-me. Um deles, esperançado de ver um sinal, aproximou-se, pondo-me defronte dos olhos o passaporte canadiano que, por acaso, eu nesse dia trazia no bolso.

Ficou assim um instante, mas ao dar-se conta que nada adiantava devolveu-o à enfermeira, disse qualquer coisa aos colegas e saíram.

Em circunstâncias normais talvez tivesse jubilado com a vitória que apenas eu sabia ter obtido, mas limitei-me a sussurrar no íntimo a frase que anos atrás me ocorrera, e condensava a ânsia de anonimato que há muito se me tornou segunda natureza: escapei à vida.

Assim era, e a minha satisfação provavelmente maior do que o daqueles que, tendo corrido um perigo, dizem ter escapado à morte.