terça-feira, maio 4

Paz à nossa volta

- Compreende? Digo que sim, que compreendo, intrigado pela confidência e aquele olhar que mostra o desespero de quem anseia por absolvição. Mas custa a acompanhá-lo no emaranhado de casos e pensamentos, de mágoas, o comezinho misturado ao trágico, a indiferença de tornar simultâneos o passado e o presente. Com meias frases, outras que ficam pendentes – Há dias que pouco falta para que faça uma asneira – eu à espera de detalhes que não vêm, ele assombrado pelas recordações, entre nós um silêncio incómodo.

Mal grado os anos continua ágil, desempenado, mas o rosto tornou-se-lhe papudo, roxo do vinho. Muito seu continua o jeito de como ao falar cerra os olhos em duas fendas chinesas, antes risonhas, agora insondáveis.

Sentado na relva à sombra dos castanheiros, o cajado entre as pernas, os cães dum lado, eu do outro, o rebanho espalhado pela ladeira, o murmúrio da água, o tilintar dos chocalhos . Dia de calor. Paz à nossa volta. Encontrámo-nos ali sem combinar, um daqueles hábitos que nunca se sabe bem por que começam, talvez por acaso ou pelas razões ocultas que umas vezes nos levam a buscar companhia e doutras nos empurram para a solidão.

In A Amante Holandesa – Quetzal, 2010