sábado, maio 8

A vida é no rés-do-chão

"Com os anos, devíamos aprender que a vida prega sempre as mesmas partidas. Mas quem aprende? Quanto mais queremos esquecer, mais ela gosta de nos apanhar desprevenidos e trazer ao de cima o que julgávamos enterrado. Mas se assim tem de ser, assim seja. O que espero é que não leves a mal. Conheço-te do berço, sabes que te tenho amizade. Sabes também, mas disso estás perdoado, que foste impaciente comigo, ou te desgostaste, porque nalguns casos, sabendo que a não tinhas, não te dei razão. Águas passadas. O teu pai e eu compreende-mos o que sofreste. Doeu-nos a ambos. A mim, por julgar que ia a tempo de acudir e falhei. A ele, por não ter podido evitá-lo. O suicídio foi a sua porta de saída. Não era o homem insensível e rude que nele vias, mas um perfeccionista, sempre descontente, infeliz no casamento, torturado por sentimentos contraditórios, vivendo uma vida que não desejara e para a qual não fora feito. O destino. Aceita que não fale de mim próprio. Já paguei muitas faltas, e das que restam darei conta ao Criador, mas estava longe de esperar que, ainda em vida, chegasse a ocasião de ter de me explicar contigo. Julguei que poderia considerar o as-sunto enterrado, os tostões que ia dando ao «Biafra» eram, na verdade, uma forma de expiação. O teu pai e eu teríamos feito o possível por evitá-lo, como também estávamos certos de que nada te faria mudar de ideia. Mas nenhum de nós, mesmo tendo tu toda a razão do mundo, queríamos que sofresses a vida inteira o remorso de seres assassino. Ou que alguém, neste caso o «Biafra», com quem tínhamos falado antes de o encontrares, pudesse usar isso contra ti. Por isso lhe pagámos para que liquidasse o polícia e te entregasse o cadáver. Nunca nos disse se o fez ele ou se encomendou o serviço a alguém. Provavelmente aos árabes. Que só depois de tantos anos te tenha procurado, deve ter sido desespero. No que a teu pai e a mim respeita, talvez compreendas, e talvez perdoes, o termos-te deixado na ilusão de que te vingavas.

Fizemo-lo para teu bem, era a única maneira. Dando a impressão de que escutara mal, ou as palavras o tornavam indeciso, Jorge levantou-se e caminhou para a janela.

Sentia-se como que anestesiado, se bem que drogado ou bêbedo exprimisse melhor o transtorno dos pensamentos. Enquanto uma parte de si quereria enfurecer-se, barafustar, um outro eu obrigava-o a uma inesperada aceitação. O Jorge menino, o menino Jorge, punha de lado o Jorge adulto, dizendo-lhe que com eles tinha sido e seria sempre assim: obedecesse, aceitasse sem discutir.

 Eles mandavam, decidiam. Ele recusara aprender, ficara de lado, não pelo receio de sujar as mãos, mas por inabilidade, indolência e um certo desdém. Desdém que o não impedia de pedir ajuda e agora o obrigava a enfrentar a frustração e a própria cobardia.

Num momento alto de zanga, o pai tinha-lhe uma vez gritado que a vantagem das pedras, que ele com tanta dedicação estudava, era não falarem nem mexerem. As pessoas falavam, mexiam, atraiçoavam, roubavam, e isso era a vida, o dia-a-dia. Os tolos e os ascetas podiam dar-se o luxo da torre de marfim, mas a existência era no rés-do-chão, com lama, fedores, golpes baixos, pontapés. Não havia aí bons e maus, porque conforme a ocasião, o interesse, a ganância, todos eram uma coisa e outra."

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in Mentiras & Diamantes - Quetzal, 2013