quarta-feira, setembro 24

O espantalho

 

Se  o abuso não desgastasse as palavras, a ponto que algumas, quando se empregam, logo se tornam ridículas, ou pior ainda, vazias  - poder-se-ia falar agora de "noite sombria"ou de  "gestação do monstro".

Mas o teatral não cabe aqui. Além disso, se na vida nada é fácil, na História, hélas! nada é simples.

A estes apontamentos talvez se pudesse juntar algum humor e amenizar assim a chegada do sinistro guarda-livros que, durante quase meio século, vai fazer da res publica  portuguesa coisa sua. Talvez se pudesse colorir o espantalho com alguns gracejos. Humanizá-lo. Mas como?

Na Europa dos anos trinta o seu caso não é isolado. Vem nas pegadas de Mussolini, seguem-se-lhe Estaline, Hitler, Franco, outros menores. Menores, no caso de ser aceitável medir os tiranos e os ditadores como se mede o pano – pela quantidade. Um mandou matar quarenta milhões, o outro dez, o outro...  Interessa isso? Em tal escala Salazar é um ditador "bom", os seus mortos são apenas uns poucos milhares, ninharia se ainda lhe fizermos o favor de dividi-los pelos anos em que reinou. Hitler e Estaline são monstruosos, Mussolini um palhaço ridículo. Franco é o inquisidor-mor nascido por engano no século errado, o carrasco sangrento da Guerra Civil e das prisões infames, mas com senso político suficiente para elevar a Espanha ao que ela hoje é.

Entre esses todos Salazar é único: pela mentalidade, pelos objectivos, pela constância padresca com que remou contra todas as marés: as da História, as da política, as da sociedade e as do bom senso. É único ainda pelo modo como soube e pôde, durante tanto tempo, mandar no país e impor a sua vontade . Sabe-se que leu e apreciou Maurras; é quase certo que procurou em Maquiavel a confirmação de que o cinismo na política ultrapassa em eficiência todos os outros meios. Mas bastar-lhe-ia a preparação que tinha tido. Vinha do seminário, do seio da Igreja portuguesa,  a que  na Europa ultrapassava – ultrapassa ainda todas as outras no obscurantismo e no carácter reaccionário.

Em 1928, após dois anos de ditadura militar, a situação económica e financeira do país é tal que o governo solicita junto da Sociedade das Nações um empréstimo de doze milhões de libras, para acudir ao mais urgente. Porém, as condições impostas são de tal modo vexatórias – incluindo uma verdadeira tutela que o governo se vê obrigado a recusá-las. É nesse ambiente que a 15 de Abril  o general Carmona é elevado à presidência da República, e que treze dias mais tarde António de Oliveira Salazar, professor de Economia Política na Faculdade de Direito de Coimbra, é nomeado ministro das Finanças.

Deputado católico durante um dia, em 1921, ministro das Finanças durante uma semana, em 1926, desta feita Salazar vem para ficar e anuncia-o secamente no seu discurso de posse: "Sei muito bem o que quero e para onde vou, mas não se me exija que chegue ao fim de poucos meses. No mais, que o país estude, que faça representações, reclame, discuta, mas que obedeça quando se chegar à altura de mandar".

Um sacerdote, igualmente catedrático em Coimbra e seu antigo íntimo, Manuel Gonçalves Cerejeira, virá a ser Cardeal-Patriarca de Lisboa. Com um padre e um quase padre , a Igreja e o Fascismo alicerçam-se no país enfraquecido, vão tomar o seu destino em mãos. Mas é preciso esperar ainda.

Ao anúncio da formação de um partido político único (União Nacional) em 1931, alguns militares democratas revoltam-se na Madeira e em Lisboa, mas sem êxito. É como um último espasmo. A próxima revolta séria, mas igualmente vã, irá ocorrer em Beja trinta anos mais tarde.

Ao guarda-livros não se pode dar desculpa, mas tem de se lhe dar um crédito: o de exigir que as despesas não ultrapassassem as receitas, e a submissão absoluta de todos os ministérios ao das Finanças. Desse modo, pela terceira vez em setenta e cinco anos, o orçamento do Estado apareceu equilibrado, e assim se manteve até que sobre ele caiu o desproporcionado peso da guerra colonial na década de 60.

Mas acrescente-se o que os panegiristas sempre passaram por alto e o que os bajuladores nunca quiseram ver: orçamentos equilibrados graças à miséria atroz para quase todos, privilégios desmesurados para um pequeno grupo. Tudo isso em nome de Cristo, da Família e da Ordem, e de uma bizarra concepção da sociedade, infelizmente partilhada por mais, e exposta pela última vez num discurso do ditador proferido em 1967: "Sempre houve pobres, sempre os há-de haver, é preciso que os haja".

A consolidação do poder ditatorial dá-se em 1932. Salazar é nomeado Presidente do Conselho. A Constituição Política de 11 de Abril de 1933 institucionaliza o Estado Novo Corporativo e, juntamente com a Constituição, surge o Acto Colonial para regulamentar a vida das colónias. Nele se afirma: "É da essência orgânica da Nação Portuguesa a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos, e de civilizar as populações indígenas que neles se compreendam, exercendo também a influência moral que lhe é adstrita pelo Padroado do Oriente".

Este Padroado tinha-nos sido pelo Papa nos princípios do século 16 e incluía. ao lado de benefícios dubitativos para as almas e os corpos dos indígenas, benefícios certos e compensadores para a Igreja Católica. Os laços entre o governo português e o Vaticano vão apertar-se ainda mais, quando a 7 de Maio de 1940 são assinados a Concordata e o Acordo Missionário, "seu complemento – que volta a abrir os territórios do Ultramar à sementeira dos Apóstolos de Cristo".

As aparências não chegavam a ser salvas pela existência de uma Assembleia Nacional, com pretensa capacidade legislativa, e de uma Câmara Corporativa com funções consultivas, pois todo o poder residia em Salazar. Ele apenas em si próprio reconhecia qualidades e inteireza suficientes para guiar a Nação. Nos outros não via mais que títeres, peças sobresselentes que mudava ao grado dos seus humores e interesses, sobretudo quando neles sentia uma ameaça, mesmo hipotética, à sua supremacia. Os poucos que lhe souberam fazer frente eliminou-os pura e simplesmente. Alguns, dotados de inteligência e talento, foram por ele acarinhados, chamados aos postos mais altos, mas não lhes perdoou assim que deram mostras de ambicionar a coroa de delfim. A um que tinha sido ministro e era embaixador em Londres em 1945, desde que tomou ares de se considerar herdeiro, demitiu do posto e relegou ao nada, invocando o motivo de ter ele, numa recepção, apertado a mão do embaixador da Rússia.

A muitos humilhou, mas essas estavam cientes de que a humilhação aceite era a melhor das garantias de sobrevivência. É histórico o caso do ministro que lhe foi agradecer a nomeação e a quem ele, depois, acompanhado-o até à porta, perguntou:

- Onde está o seu chapéu?

- Não uso chapéu, senhor Presidente.

Salazar retirou do cabide um dos seus e meteu-lho na mão:

- Daqui em diante passa a usar.

Identificando o regime com o Estado e este consigo mesmo, Salazar considerava toda a oposição como subversiva, todos os oponentes como perigosos.  E assim logo nos primeiros anos cria uma polícia política (PVDE, mais tarde denominada PIDE e, sob Caetano, DGS), decalcada nas que existiam então na Alemanha e na Itália.

Esse aparelho repressivo vai ser o seu principal apoio, utilizando-o não somente contra os inimigos do regime, mas também como instrumento de coacção sob aqueles cuja fidelidade tendia a esmorecer.

A prisão, a tortura e a denúncia passam a fazer parte do quotidiano português, embora a Constituição de 1933 garanta os direitos fundamentais. Estão lá todos: desde a liberdade de palavra, de associação e de crença, até à imunidade contra a prisão arbitrária. Mas não passa de um papel. Negar aos seus concidadãos o que lhes cabia por direito, talvez tenha sido um dos raros divertimentos do aberrante a quem nunca se conheceu uma paixão ou mesmo uma simpatia, todo voltado para Deus e para o supremo desdém dos homens.

No dia seguinte ao da sua morte o escritor António Alçada Baptista, íntimo do Cardeal Cerejeira, quis saber que opinião tinha este do seu amigo de toda a vida e aliado de sempre. O Cardeal, talvez com o sentimento de que a última hora para si também não tardaria, teve este desabafo: "O Presidente Salazar era um homem de  muitas qualidades. Mas virtudes? Não. Nenhuma".

Não lhe fica mal como epitáfio, mas estamos ainda longe do dia em que uma modesta cadeira, quebrando, põe fim a uma carreira política, excepcional em mais de um aspecto.

O governo, a Assembleia e o funcionalismo relegados ao papel de comparsas. O povo açaimado e conhecendo um atraso e uma miséria medievais. A polícia perseguindo e torturando os oponentes, sobretudo os comunistas que, desde o início serão os adversários mais consequentes e constantes do regime; Salazar é, na verdadeira acepção, senhor e dono do país. Tal como um soberano mantém a sua corte de vassalos. Aos favoritos distribui prebendas, mercês e, para melhor os dominar, permite-lhes que roubem impunemente, reservando para si a auréola de incorruptibilidade, de desinteresse material e ascetismo.

A história da corrupção em Portugal entre 1926 e 1974 talvez nunca venha a ser escrita, mas é interessante recordar como o povo a sintetizou numa anedota:

 Uma noite jantava Salazar em casa do general Carmona, então presidente da República e à mesa reinava um silêncio profundo. Um dos netos do general, ainda criança, voltando-se para Salazar quis saber:

- Senhor presidente, o que é o governo?

Não tendo recebido resposta, na sua inocência fez mais uma pergunta:: - E o que é a ditadura?

Salazar retorquiu irritado: - O menino faça como o avozinho, coma e cale-se.

Na verdade comiam os dignitários, os grandes industriais e os banqueiros. A Igreja comia em doses duplas, e os padres eram os preciosos colaboradores do aparelho repressivo: os "certificados de moralidade"que passavam, e que muitas vezes vendiam, eram um documento indispensável para a obtenção de um emprego, de um passaporte, do bom andamento de um requerimento. E Deus abençoe a separação da Igreja e do Estado, tão bem assente no papel.

O povo, esse, via com pasmo passarem a caminho da Espanha, onde começara a Guerra Civil, comboios carregados de víveres, em cujos vagões a propaganda oficial tinha pintado em grandes letras brancas: "Sobras de Portugal".

Seria pouca coisa, comparado com o que Franco recebia e Hitler e Mussolini, mas esse pouco era tirado a gente com fome, a um país onde a tuberculose, consequência da miséria, era, e seria ainda durante muitos anos, um mal endémico.

Com as "Sobras" iam também 20.000 homens, dos quais lá ficaram 8.000, quase o dobro dos portugueses mortos na Primeira Guerra Mundial.

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in Portugal - a flor e a foice 

 

segunda-feira, setembro 22

Fim de uma era

 

O rádio entrou na minha vida no Outono de 1939 e durante os anos da adolescência foi uma mina de encantos. Com ele descobriria o mundo, com ele aprendi mais do que em qualquer escola: música clássica, debates, reportagens, conferências, mesmo que o quisesse seria impossível fazer o balanço do proveito que me trouxe.

No começo da década de 50, porém,quase que subitamente me desinteressei dele. A pressa de viver e ir pelo mundo não se compadecia com a atenção estática. Fora isso havia o jornal, com a vantagem de ser portátil.

O Primeiro de Janeiro” fazia parte da mobília desde o princípio, ir ao quiosque comprar o “Janeiro” era um ritual que vinha do meu avô paterno, recortavam-se nele os folhetins que depois, perfurados e atados com cordel, seriam dos primeiros livros que li.

Recordação melancólica, a dos gritos dos ardinas. “Olh’ó Janeiro! Olh’ó “Comércio!” No Porto, em Viana, depois em Lisboa, para mim o jornal era tão importante como o comer. “Olh’ó Notícias! Diário Po’plar! Olh’ó Séc’lo!

Na Paris existencialista, jornalista encartado, agravou-se-me o vício. Os jornais da Pátria desapareceram do meu dia-a-dia, entraram nele os franceses e os brasileiros, de vez em quando o Times e o New York Times, para fazer chique e facilitar o contacto com a fauna nórdica das mocinhas au pair. L’Express e Les Cahiers du Cinéma, ambos um must.

Debaixo do braço ou enfiado no bolso, a tinta do Le Monde sujava os casacos e os impermeáveis, marca simultânea de desleixo boémio e supremo desdém pelas regras da burguesia.

Nos meus hábitos a televisão demoraria a suplantar o jornal, mas até meados dos anos 80, em quatro línguas, ainda lia quatro diários e outros tantos semanários. A partir daí o entusiasmo foi abrandando, passei a gastar mais tempo com a têvê do que com a imprensa.

Em 1987 comprei o meu primeiro computador, hesitando entre um Apple Macintosh Plus e um PC Amstrad. O Apple era mais bonito, mas tinha o aspecto e as dimensões de um brinquedo, enquanto que Amstrad eram duas caixas de meter respeito. Optei por ele. Seguiram-se anos de miséria a decifrar os códigos do MS.DOS, as bizarrias de WordPerfect (wysiwyg). Tortura foram também os começos do correio electrónico, só possível quando ambas as partes usavam programa idêntico. Mas que festa!

Por volta de 2003 a internet conseguiu o que o Diabo tinha falhado: tornar-me possesso (ou quase). Jornais e semanários só já tenho um de cada. Escrevo “tenho” porque de facto mal os leio, deito uma vista de olhos aos títulos e às fotografias, pois o que lá encontro de notícias é de ontem ou da semana passada.

O jornal sobremodo me irrita, porque além dos longos comentários com muita parra e pouca uva, desde há tempos oferece (ao que isto chegou!), juntamente com as tradicionais receitas de culinária, receitas para aprender a ser escritor.

As cartas a terminar as assinaturas estão escritas, os envelopes fechados, daqui a nada vão para o correio.

Assim se encerra uma era, iniciada por volta de 1935, quando meu avô, abrindo o “Janeiro”, me ensinava a soletrar.



 

sexta-feira, setembro 19

A fama

Em defuntos e famas o bom conselho é: não mexer. No que respeita os primeiros as razões saltam à vista, mas, pelo menos para mim, tratando-se de reputações o caso torna-se bicudo. É facto que, como o comum da gente, aceito com pouca vontade de investigar a fama que, pelos séculos adiante, gozam os grandes políticos, grandes generais, os grandes isto e aquilo.

Compreendo que os depositem em panteões, lhes ergam estátuas, lhes gravem o nome em letras de ouro, e que de geração em geração se vá repetindo que foram grandes.

Aqui descambo um pouco, pois se estava a pensar em fama não era a dos caudilhos, mas a da gente da escrita, o tipo a que os estudiosos se referem falando de “grande homem das Letras”, qualificativo seguido, em geral, de pontos de exclamação.

Nesse particular Raul Brandão (1867-1930) é uma das minhas bêtes noires. Se adrego de dar com estudo ou artigo que trate dele e da sua obra, desanda-se-me o entendimento.

Leio isto e mais num que acidentalmente me vem à mão:

O catastrofismo ‘finissecular’ de pendor apocalíptico, ora desesperante ora esperançoso, atinge progressivamente na sua obra uma dimensão patética e interrogativa.” E mais adiante: “... tudo isso se torna nele simultaneamente interior e exterior e pode designar-se, nas suas diversas variantes, como o energismo onírico que radicaliza a vida e, em última instância, lhe propicia o único sentido possível.”

Quer o Diabo que em tempos muito idos, por obrigação de trabalho, eu tenha dedicado algum tempo a estudar Raul Brandão. No passado, como agora, o que muito me irrita é a desfaçatez de, para que se lhe não manche a fama, sistematicamente se esconder um lado, para mim essencial, da mentalidade do escritor e da sua atitude de cidadão.

Como se dá o caso de estarmos mais uma vez em crise, e os políticos e banqueiros se desunharem em busca de soluções, pelo menos no que respeita a nossa Lusitânia Raul Brandão, no vol. III das suas “Memórias” sugere esta, que jamais recordo de ter encontrado em artigo ou estudo que lhe dissesse respeito:

“A nossa ruína não vem dos políticos nem do regime... o mal é da raça... Se quisermos modificar o país, temos de fazer exactamente o mesmo que se faz com os cavalos, temos de mandar vir homens do Norte, ingleses, escandinavos, suecos, e de manter aqui e além postos de cobrição”.

Ainda nas “Memórias” explica ele que o nosso povo é o fruto de “cruzamentos complicadíssimos de selvagens da época quaternária com iberos, ligures, fenícios...”, nascido de “mães que comiam os filhos”... e dos árabes que em “ondas de sangue negro inundam a península, gente incapaz de civilização, incapaz de coesão nem ideal. Vinham da remota África cevar-se.... A nossa decadência começa com as conquistas, não por causa do oiro, mas por causa dos cruzamentos. O sangue preto alastra no povo... Com uma raça mesclada faz-se um grande país, havendo uma elite que a dirija. O pior é que o sangue negro começa, a certa altura, a alastrar na raça condutora, que não pode conservar-se indemne.”

Mesmo o antagonismo entre Porto e Lisboa é-nos explicado pelo tripeiro Raul Brandão como uma questão de raça: “Ao passo que o semita, no sul, queimava gente aos milhares, nunca foi possível no Porto, devido ao elemento árico, fazer um auto de fé.”


Ah! A fama!

 

quarta-feira, setembro 17

Bons, mas inúteis conselhos

 

1 – Disse alguém que "a cozinha italiana deve ter de tudo um pouco, mas esse pouco abundante." O mesmo vale para a leitura. Bom, péssimo, medíocre, banal, excepcional,, leia em abundância e de tudo: Camilo, Eça, Vieira, Guimarães Rosa, Bocage, folhetos medicinais, instruções para uso, anúncios, necrologias, nomes de ruas... No meu começo, aí pelos oito nove anos, foi-me de grande utilidade e deixou impressão duradoura a leitura do Regulamento Geral das Alfândegas (1928).

 2 – Entre em transe. Se lhe parecer custoso tente atingir aquele estado segundo em que não se ouve a família, nem a televisão, nem os vizinhos, e em simultâneo tente esquecer. Esqueça a hipoteca e o talento de A., a fama de B., o êxito daquela besta que escreve mal e vende dezenas de milhar. Esqueça. Seja firme, esqueça, e escreva . Desânimo? Dor de cabeça? Náusea? Medo? Continue a escrever.

3 – Pegue num texto alheio, em português, de preferência moderno. Surpreenda-se com o uso e abuso da palavra "não". Encontrará o ditongo repetido em substantivos e formas verbais. Leia em voz alta e o mais provável é que lhe perguntem porque está a ladrar.

4 – Evite acessos poéticos de raiva e desespero. Guarde tudo o que escreve, mesmo o que lhe parece péssimo. Deixe passar meses. Releia. Constate que o seu juízo crítico não é aquele instrumento infalível de que tanto se orgulhava. Aqui e ali encontrará uma bela frase, uma descrição realmente poética, um bom diálogo.

Isto, porém, aplica-se somente ao texto acabado. Na feitura a regra é o corte sem piedade. Leia e releia, corte e volte a cortar. Por contas que em tempos fiz, em cada página que me parece pronta há três ou quatro de cortes, e quando a vejo impressa ainda descubro o que devia ter cortado.

5 – Diálogos. Arte bicuda, calcanhar de Aquiles de muita prosa. Há escritores que como que perdem a cabeça ao pôr os seus personagens a dialogar. São surdos, ignoram como se fala à sua volta, ou querem fazer chique e rebuscado, na ilusão de que na literatura, como em Cascais, tudo é gente da alta falando em mais-que-perfeitos e conjuntivos.

Ainda é delicado dizer estas coisas, mas já agora que toco em classes, os diálogos mais desastrados da literatura portuguesa encontram-se nos romances neo-realistas. O povo, ali, fala no tom dos cardeais de Júlio Dantas.

6 – Na boa prosa há ritmo, melodia, pausas, há crescendi e fortissimi (não se deve abusar destas mostras de saber, mas uma vez não são vezes), mal vai àquele que escreve ficção sem ser dotado de bom ouvido musical. Nunca se dará conta do mal que escreve, como ignora que canta desafinado.

7 – O leitor merece incondicionalmente o seu respeito. O leitor partilha consigo intimidades e momentos de emoção que esconde ou nega mesmo a outros que lhe estão próximos. Tenha isso em mente, ofereça-lhe o que tem de melhor.

8 – Não perca tempo a invejar a produção de fulano que, como se andasse grávido, todos os nove meses dá nascença a um livro. Escrever é paixão, fado, impulso que vem do mais fundo. De vez em quando traz benefícios, mas não é comércio.

9 – Tenha presente: um escritor não é um saltimbanco. Por respeito a si próprio evite dar-se em espectáculo. Mesmo que tenha seguido um curso de dicção – seguiu? - recuse  ler prosa sua num palco. Os sádicos adoram, o resto do público aprecia pouco e isso nota-se na moleza das palmas.

10 – Dedicatórias impressas na primeira página? Nunca. Os amores morrem, as amizades perdem-se, chega sempre o tempo em que é doloroso o confronto com as palavras que exprimem sentimentos defuntos.

Continuo grato ao amigo a quem um dia quis dedicar um romance e ele, lendo as duas linhas da minha admiração, resmungou: "Isso é prosa do presidente da junta a dar boas-vindas ao presidente da câmara. Não ponhas."

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PS. Bem prega frei Tomás: eram quinze, mas no texto acima ainda nove vezes se repete o fatal "não".