«Posso jurar. Não se lhe apontava isto. Nada! Nadinha! Nadinha! E então desembaraçada… As vizinhas até diziam que era demais. Inveja, senhor, inveja, ciúmes. Já de catrainha, se a escolhiam para ir de anjo na procissão, vinham logo com o nome desta e daquela, que eram mais bonitas, mais asseadas, até chegaram a levantar boatos contra o sacristão e foi preciso que o meu homem desse um par de bofetadas nos irmãos da Vesga, um perigo, porque ambos tinham má fama e o mais novo era corréço, os guardas um dia levaram-no com algemas e tudo, porque ele se babava de raiva. Pois vai o meu homem e bate--lhes à porta, toda a gente sabia como ele era, coitadinho, uma mansidão, mas se alguém mexesse na filha ou em mim não havia força que o parasse. Isso é que o matou, o génio, lá está com Deus Nosso Senhor. O Vesgo mais velho apareceu à porta e ele nem lhe perguntou que horas eram, com uma lambada derreou-o contra a ombreira, e o Abílio, o corréço, ao ver o irmão naquele estado veio com a navalha de ponta-e-mola, todo preparado, a vizinhança aqui d’el-rei, mas ninguém se chegava, e foi então que o meu Francisco se abaixou e pegou num calhau, atirou-lho tão certeiro que o apanhou no pescoço e lhe fez um lanho de mão-travessa. Bem sabiam que a culpa era deles, com os levantamentos e a má-língua, mas na hora do tribunal não houve quem dissesse uma palavrinha pelo meu homem, dos vizinhos não apareceu um, e o senhor Pires sacristão, que gostava tanto da minha filha, também não. O infeliz lá teve de amargurar seis meses de cadeia, foi nessa altura que resolvi mudar-me para cá, porque no meio daquela cambada nem podia sair à rua, mandavam os garotos com ditos e aperreações, sujavam-me as escadas, a minha Carlota nem se atrevia a ir à escola. À igreja também nunca mais foi, não queria, e que quisesse não a deixava eu, por causa do falatório.
O meu homem no princípio achou mal. Tinha o bote no Cais das Freiras e era lá que os senhores ingleses atravessavam o rio, e eles sempre pagavam melhor que as lavadeiras ou a outra gente, mas foi-se sujeitando como pôde. Às vezes queixava-se que era um estirão, cantigas, se eu adregava a passar pelo cais depois das seis, lá estava ele encostado ao balcão do Catarino. Nunca me zanguei. Para quê? Bebia um copito, bebia dois, mas nunca nos faltou com coisa nenhuma, e por isso é que a vizinhança nos não podia ver, tanto os daqui como os de lá. Só por ser barqueiro?… Mas ó senhor! Para comer sempre chegou. Os estrangeiros davam cinco mil réis pela passagem, em vez dos dez tostões, davam até mais quando estavam tocados. E o meu Francisco recebia muito dos tripulantes dos navios. O senhor lembra-se de Gaia nesse tempo? Aquele cais dava rios de dinheiro. Então na guerra, com o volfrâmio e o contrabando, nem se fala! Uma vez chegou a casa com dois contos que lhe tinha dado o… ai meu Deus! Não quero dizer o nome, foi jura que fiz! Enfim, por um servicito. Na minha vida nunca tinha apalpado notas daquele tamanho, deu-me uma desconfiança de que seriam falsas, mas no outro dia fomos ao Ramos, na Rua Direita, comprámos do bom e do melhor, e eu bem vi como o merceeiro se pôs a virar a nota sem dizer nada. Em vez de abrir a gaveta tirou a carteira do bolso e dobrou-a com muito jeito. Pois é. Os outros ganhavam tanto como o meu, mas bebiam tudo, ou metiam-se no Royal, um café que nesse tempo havia na Rua Escura do Porto, com mulheres da vida. Saíam de lá a tinir e carregados daquilo, tão doentes que depois nem podiam segurar os remos, cobertos de feridas, se se chegavam à gente era um nojo, as ligaduras cheias de pus. Por essas e por outras é que alguns foram obrigados a botar os filhos na Casa Pia e que algumas raparigas se desgraçaram, como as da Maria Mouca, com catorze e fartas de saber todas as porcarias, um desafiar a Deus, nem se estranha que lhes tenha dado a tísica. Não digo isto para falar mal de ninguém, só para que saiba que se os homens delas fizessem como o meu não precisavam de passar fomes nem necessidades. Mas elas também, as mulheres, Nosso Senhor me ajude! Assim que apanhavam um pataco não lhes cabia o rei na barriga, queriam luxos, se compravam era logo sedas e tacão alto, iam nas excursões rio acima, para Avintes, para a festa dos Carvalhos, para a Amarante, para o Senhor da Pedra, eu sei lá! Espatifavam tudo em comes e bebes, na gandaia, nem falo das noites de São João nas Fontainhas, voltavam para casa de madrugada, elas tão entornadas como eles, ficavam a cozê-la o dia inteiro, um desleixo, as crianças ranhosas e de cu ao léu. Nós não. E a senhoria, a mulher do senhor Magalhães, até dizia que a nossa Carlota parecia menina de colégio, todos os dias com vestidinhos limpos, muito bem mandada, obediente, o gosto dela era fazer recados. Se lhe davam alguma coisa não era porque ficasse à espera, até parece que se envergonhava de receber, o raio da rapariga! Depois aconteceu a desgraça com o meu falecido, que Deus tenha. Ele estava aí sentado, como o senhor está, virado para a janela, porque tinha a cisma de ficar à espreita dos vapores que subiam o rio, e eu ainda lhe disse, tira-te daí, por causa da corrente de ar. Estranhei, porque não era modo dele o não dar resposta, vai de repente apertou as mãos no peito, julguei que se ia levantar, deu um grito, e pronto.
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O senhor desculpe.
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Vai fazer oito anos e dois que a minha Carlota casou. Primeiro andou a servir com os senhores Bias (Byass) que tinham casa na Foz e eram dos vinhos, mas despediu-se, porque queria ir para Lisboa Eu não sabia de nada, mas nessa altura já ela tinha conhecido o Antunes, que é agora o meu genro, e os senhores ingleses ainda a quiseram segurar, até prometeram que a levavam depois para o estrangeiro, mas ela é como eu, em se lhe metendo uma coisa na cabeça… O Antunes, coitado, também não tinha nada, só o trabalho dele na tipografia, às vezes vinham aqui aos domingos e não se calava, queria casar sem estar à espera, irem ambos para Lisboa, ganhar algum e pagar a passagem para a França. Isso, as pressas, é que foi a desgraça de ambos. Enfim, desgraça é um modo de dizer, lá estão, lá se vão arranjando. Mas eu era contra, e se não fosse o padrinho do Antunes que é reformado da CP ainda hoje estavam aqui comigo, não precisavam de andar a padecer lá por longe, porque o que ganho chegava ao menos para a casa e o comer, o resto podiam guardá-lo ou comprar algum luxo. O armazém do Kopke paga agora cinquenta mil réis às engarrafadeiras, e eu recebo sessenta e oito por ter dezassete anos de casa. Diga com franqueza: não chegaria para comermos os três? Mas o tal padrinho meteu-lhes minhocas na cabeça, que fossem, que ele em Lisboa tinha uns conhecidos e arranjava para entrarem na lotaria dos casamentos de Santo António, que era uma coisa dos jornais. Também me veio com as mesmas tretas e eu, para dizer a verdade, não gostei da cara do homem, não sei porquê mas não gostei. Quando se foi embora ainda disse à minha Carlota, mas não adiantou, ela só via o Antunes, tudo era o Antunes, parecia que o rapaz lhe tinha botado enguiço, e ela riu-se tanto que comecei a ter as minhas suspeitas. Mas depois de uma certa idade, senhor, os pais não mandam nada coisa nenhuma e calei-me. Quer mais uma pinguinha?
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Lá fui ao casamento. Queriam-me pagar a viagem, mas graças a Deus não foi preciso, ainda lhes pude dar umas coisitas que tinha juntado, e ela ia muito bonita no meio daquela gente toda, ninguém havia de dizer que era filha de um barqueiro e de uma engarrafadeira, o vestido de noiva a arrastar pelo chão e um ramo de lírios. O Antunes também, muito sério, de fato preto e gravata com pérola. O que me incomodou mais foi o raio do padrinho, a moer-me os ouvidos que aos noivos de Santo António os jornais davam o fim do mundo de prémios, viagens ao estrangeiro, e casas, e mobílias de sala de jantar, e que ele tinha mexido os paus com um compadre que trabalhava no Diário Popular, que o afilhado e a Carlota saíam do casamento com uma boa dúzia de contos. Ainda lhe disse: ó homem! então vossemecê julga que com tanta gente a casar neste dia por causa dos prémios ainda sobra alguma coisa? Mesmo lá com a ajuda do seu compadre? Ele moita, cara de enjoado, até que chamaram os nomes dos premiados nos altifalantes e eles eram os últimos, Abílio Antunes e Carlota da Conceição. Saiu-lhes um saco de sal, sessenta quilos de sal grosso que não servia para nada, nem para a comida, parece-me que o Antunes o deitou logo fora porque a serapilheira estava podre da humidade. Eu p’ra cá voltei. Quando eles foram para a França ainda queriam vir dizer adeus, mas era uma despesona e acabaram por não vir. Agora será o que Deus quiser. Nas cartas dizem que estão bem, mas eu, senhor, para falar com franqueza, não acredito. Há gente que nasce num folinho, tudo lhes corre direito, mas nós é trabalhar e mais trabalhar, não saímos da cepa torta. Se às vezes levantamos um bocadito a cabeça pouco demora que não venha a bordoada. Vamos tendo para comer, mas também é só isso.»