O impacto de certos
acontecimentos da infância é tão profundo que pela vida fora se guarda a ilusão
de poder rememorar sem falha os detalhes do local em que se deram, o ambiente,
o aspecto das pessoas então presentes, os seus gestos, o timbre das vozes, o
arrumo dos objectos.
Tenho oito anos e meio e um
fim de tarde de Novembro entro com meu pai na barbearia da Rua Direita, mesmo
defronte do quartel da Guarda onde ele trabalha.
Cerro um momento os olhos
para melhor "ver."
Como ambos os barbeiros
estão ocupados e ele tem ainda de ir acabar um serviço, deixa-me ali à espera
de vez, recomendando ao patrão que me corte o cabelo a preceito, porque tenho
de ficar bonito para a festa.
A festa é na escola, no dia
seguinte. Escolheram-me para recitar um longo poema histórico que tive de
aprender de cor e, porque receio enganar-me ao recitar e não tenho a certeza de
ter decorado tudo, tento esquecer a minha apreensão, distraio-me a observar o
que me rodeia. As imagens que se multiplicam nos espelhos, o incessante manejar
das tesouras e das máquinas, o modo como os barbeiros se curvam para
inspeccionar o corte, virando e revirando a cabeça dos clientes, o manejo
gracioso dos pincéis da barba e das navalhas, a pulverização com água de
colónia, a nuvem de talco para amaciar as faces.
A
minha vez demora. Folheio o jornal, leio o que está nos calendários e nos
rótulos da frascaria. Apanho uma palavra e de súbito só tenho ouvidos para a
conversa entre o senhor Pontes e o cliente que ele atende, ou melhor: para o
monólogo do senhor Pontes.
O
cliente, a quem ele vai começar a fazer a barba, está meio deitado na cadeira
e, a cara recoberta de espuma de sabão, limita-se a uns grunhidos e a franzir o
sobrolho de vez em quando.
O
senhor Pontes conta coisas de antigamente. A razão de ter aprendido o ofício na
tropa e porque trabalhou na cadeia antes de se estabelecer por conta própria.
- O
que vi, meu amigo, dava um romance.
O
cliente tenta concordar com um aceno de cabeça, mas como a mão do senhor Pontes
sobre a testa o imobiliza contra o apoio da cadeira, não pode fazer mais que
revirar os olhos.
- E o
que passei dava para outro - continua o senhor Pontes. - Olhe que passei coisas
do diabo. Tive ocasiões em que a minha única vontade era pôr fim à vida.
Miséria, fome, frio, doenças... Nem quero que me lembre. Se não fosse a minha
mulher, não sei o que teria sido de mim. A estas horas, ou tinha caído nalguma
desgraça e andava por aí a pedir, ou estava morto há tanto tempo que já se me
tinham apodrecido os ossos no cemitério. E por falar em mortos, posso dizer que
é a eles que devo a vida.
O
cliente manifesta a sua surpresa agitando ambos os braços. A minha curiosidade
redobra. Mudo discretamente de cadeira para ficar mais perto, de tal modo
concentrado que a conversa dos outros se torna burburinho e não perturba a
minha atenção.
- Se
bem que, para falar com franqueza, o ataque que tive, e o médico não disse que
não, com certeza foi devido ao meu caso com o defunto Borges. Já lho contei? Conheceu
o Borges? Aquele Borges picado das bexigas que tinha a loja de ferragens ao pé
da escola?
- O Zé
Borges? - pergunta o cliente, libertando a cabeça e tirando o lenço para se
assoar.
- Esse
é o mais velho, o da loja de panos. Não. Falo do Manuel, o que faleceu faz
agora dois anos em Dezembro. O Zé Borges está vivo. Acabadote, mas todas as
tardes vai ao café dar a sua tacada, e ainda a semana passada o tive aqui na
cadeira. O meu caso foi com o irmão, o Manuel. Nunca lho contei?
Esquecido
de que as mãos do senhor Pontes o imobilizam de novo, o cliente abana a cabeça
e o barbeiro suspende o movimento da navalha, avisando-o do perigo:
- Não
se mexa, porque o posso cortar sem querer. Pois foi um caso curioso. E como já
disse, por isso é que provavelmente me deu depois o ataque. Mas para começar
pelo começo, eu na cadeia ganhava pouco. O ordenado era uma migalha e os
presos, coitados, de longe a longe lá havia um que deixava uma gorjeta, coisa
de nada, uma coroa, dez tostões para um copo, cinco mil réis para uma sande. Por isso, e para juntar um
dinheirinho, comecei às noites a barbear mortos, a cortar-lhes o cabelo.
Umas
vezes era a agência que me chamava, outras vezes a família. Vi muita desgraça,
meu amigo, muita tristeza. Mas
para mim um morto era um morto. Davam-me dez mil réis por cada barba, vinte e cinco pelo
cabelo, mais alguma coisa se era preciso um serviço extra. Frisar o bigode, por
exemplo, cortar as unhas. As pessoas traziam água quente, uma toalha, depois
deixavam-me sozinho com eles, e eu, para dizer a verdade, tratava-os como
qualquer outro freguês. Com
respeito. No resto pouca diferença. O senhor está vivo, graças a
Deus, mas como vê eu pego na sua cabeça e viro-a para onde me dá jeito. Para
aqui, para o outro lado, mais para a frente, inclinada, mais para trás. Ora com um morto é igual. E
mesmo quando já estão tesos sempre se arranja maneira de os aprontar. Há
ocasiões que é preciso forçar um bocadinho, mas enfim, eles já não sentem nada.
Andei
anos e anos nisso e devo dizer que ganhei uns vinténs. Se não fosse o caso do
Borges, talvez tivesse continuado. Embora que depois de certa idade já não se
aguentam coisas que se aguentavam aos trinta ou aos quarenta. O cheiro, por exemplo. As
feridas. Tive alguns... Não quero contar porque está aí a criança,
mas às vezes, com franqueza... (a "criança" põe-se a olhar fixamente
para a rua). E a sujidade de algumas casas... Não sei como há pessoas que
aguentam viver no meio de tanta porcaria. Pocilgas.
A
única coisa que me interessava era o dinheiro, claro, mas houve ocasiões em que
estive vai-não-vai para nem tocar no morto e sair dali a correr. O sarilho é
que a gente tem obrigações e aceitando um tem de os aceitar todos. Senão, adeus
negócio. Outras vezes dava-me pena, ou era a casa de um conhecido, e mesmo
contra vontade lá fazia o serviço. No princípio trabalhava calado, olhava o menos possível. Sem saber por quê.
Talvez com um bocadito de receio. Mas tudo se torna hábito e para que o tempo
passasse mais depressa, comecei a falar com eles. Às vezes, se eram conhecidos,
até me dava para umas piadas, ou para lhes dizer coisas que nunca diria se
estivessem vivos. Manias que se ganham.
O
senhor Pontes cala-se um instante. Olho furtivamente e vejo-o de lábios
apertados, em profunda concentração, esticando entre os dedos a pele do pescoço
do cliente para melhor a escanhoar.
- Num
morto o pescoço também é dos piores lugares. A pele é mais fina e com um
descuido de nada corre logo sangue. Mas enfim, estávamos a falar do Borges. Quando
me vieram dizer que tinha morrido, também pensei que tivesse sido o irmão. Por
ser mais velho e andar sempre doente. Mas não senhor, tinha sido mesmo o Manuel. Fiquei
meio assarapantado. Era rapaz da minha geração, tínhamos sido vizinhos,
companheiros de escola. Tínhamos feito a tropa juntos. E assim sem mais nem
menos chega aí um sujeito com o recado, e que a mulher me pedia para que o
fosse arranjar.
O meu
costume é ir à noite, para não dar nas vistas. Claro que quem me vê entrar de
malinha na casa dum falecido, sabe logo ao que vou, mas não gosto de
bisbilhotices nem comentários. Um ou outro engraçado às vezes começa com ditos,
"Lá vai o Pontes escanhoar os mortos!" Faço de conta que não é
comigo. Pois nessa noite fechei a loja, preparei os apetrechos e lembra-me
muito bem de ter dito à minha mulher que não me apetecia comer.
A
barba está feita. Depois de ter pulverizado água de colónia sobre as faces do
cliente, o senhor Pontes estica uma toalha e às mãos ambas sacode-a diante dele
como um leque, a acalmar o ardeúme.
- E o
cabelo, como vai ser? Curto? Só aparado?
-
Aparado - responde o cliente que rebusca nos bolsos, encontra, e aproxima o
cigarro do lume que o senhor Pontes lhe oferece.
Deliciado, aspira
profundamente o fumo todo. Eu sigo aquela mágica, à espera de que o fumo lhe saia
pelas mangas ou pelos ouvidos. Como
no circo. Mas depois de um longo intervalo, quando já quase me desinteresso,
vejo que o sopra pela boca em círculos perfeitos, cada um maior que o anterior.
Os nossos olhares cruzam-se
no espelho, e pelo modo como ele sorri suponho que fez aquilo para me divertir.
Irrita-me quando me tratam como criança ou quando, porque sou pequeno, me
dão sete anos.
Tenho oito e meio. Já li
a vida de Napoleão, as aventuras de Texas Jack, um ror de livros de Salgari, de
Jules Verne, todos os dias leio o jornal. Não sou criança nenhuma, mas as
pessoas não se dão conta e contra elas não tenho defesa. O homem sorri de novo.
Acanhado,
viro-me para a rua.
O senhor Pontes tira duma
gaveta uma toalha grande, envolve o homem nela, estuda a cabeça, inclina-a para
o lado e, pente numa mão tesoura na outra, começa o seu trabalho com os
movimentos certeiros de uma longa rotina.
- Então o senhor era amigo
do Manuel - diz o cliente, a reatar a conversa.
O barbeiro demora a
resposta, ocupado a acamar um tufo de cabelo para igualar o corte. Penteia,
corta, faz estralejar a tesoura, penteia de novo, corta mais um bocadinho.
-
Amigo de muito anos - continua ele. - Como estava a dizer, nessa noite fui logo
lá. Entrei, dei os pêsames à viúva, à família, e pelos jeitos as pessoas sabem
como faço, porque dali a nada trouxeram a bacia da água, saíram todos e
deixaram-me com o defunto.
Ou
pelo tom sigiloso, pelo seu modo expressivo de narrar, ou pela minha natureza
excessivamente impressionável, o certo é que no momento em que o senhor Pontes
começa a descrever a sua entrada na casa do morto, a barbearia e o cliente
deixam de existir, eu deixo de ser eu próprio. As palavras que oiço são as que
digo, no meu cérebro há uma amálgama de pensamentos alheios, observações,
memórias de uma vida diferente, antiga, sinto no corpo o cansaço de muitos
anos.
Na
hipnose dessa estranha dualidade, sou
casado, sou barbeiro com loja na Rua
Direita.
-
Alguém fechou a porta e só então tive coragem de encarar o falecido. Estava o mesmo, coitado. Um
bocadito mais magro do que da última vez que nos tínhamos encontrado. Olhe que
tem que se lhe diga, conhecer-se a gente a vida toda e estarmos ali um morto e
o outro vivo! Sem saber para onde a morte nos leva.
Enfim,
eu não queria ficar calado a olhar para ele, até me parecia falta de amizade.
Comecei a ensaboar-lhe a cara e fui falando de coisas nossas, marotadas do
tempo de rapazes, lembranças da tropa. Ao fazer-lhe a barba era como se
estivesse aqui na cadeira, porque a maior parte dos fregueses também fecha os
olhos. É ideia minha, claro, mas tive a impressão que me ouvia. Sabe porquê?
Porque como é natural, ao tocar-lhe sempre mexia um bocadinho. E a fingir,
quando me pus a assentar a navalha até lhe disse, "Ó Manuel, se estás a
mangar comigo é melhor que te levantes, porque já não tenho idade para
brincadeiras."
Tolices
que se dizem. Para passar o tempo. Sem malícia nenhuma. Talvez não me lembrasse
de dizer isso a um estranho, agora a um amigo é de compreender, não é?
Comecei
pelo lado direito, como é meu costume e escanhoei até ao queixo. Depois quis passar para o
outro lado da cama, mas como tinham arrumado lá umas cadeiras resolvi continuar
mesmo dali.
Debrucei-me
sobre ele, porque dava mais jeito, e disse,"Vê se ficas quieto, não te vá
cortar". Pois senhor, ou porque lhe apertei o peito, ou por qualquer outra
coisa, no amaldiçoado momento em que digo isto vejo-o mexer como quem se quer
levantar, dá ele um urro e eu, com o susto, caí redondo.
Recobro
os sentidos com a estranha sensação de deixar uma pele que não é a minha, para
retornar a outra que também me não pertence por inteiro.
Meu
pai tem-me ao colo, o senhor Pontes espera com um copo de água na mão, o
cliente voltou a cadeira para o nosso lado, além do outro barbeiro estão mais
quatro ou cinco homens. Todos ansiosos. A aconselhar meu pai a que me dê
devagar umas bofetadinhas na cara, para o sangue correr mais depressa.
O
senhor Pontes pergunta se não será melhor mandar buscar um café para que eu
arrebite. Com o seu modo brusco meu pai acena que não e diz que um desmaio não
é doença, que me deixei impressionar pela história. Mas pronto, foi coisa
passageira, estou fixe.
Para o
provar tira-me do colo, senta-me numa cadeira, pergunta se me sinto bem. Digo
que sim, que me sinto bem, mas numa voz tão baixa que o barbeiro, consternado,
repete as minhas palavras e me chega o copo aos lábios, dizendo que beba, que a
água me vai pôr fino.
Aliviados
de me ver retomar a cor, acendem os cigarros. O senhor Pontes manda o aprendiz
à pastelaria buscar cafés para todos e para mim um cartucho dos grandes de
rebuçados Victória.
A
conversa continua sobre o assunto de desmaios e mortes, enquanto meu pai de vez
em quando me levanta o queixo ou me sacode os ombros, a certificar-se de que me
comporto "como um homem", uma das suas expressões favoritas.
O
aprendiz volta com os cafés numa bandeja. O senhor Pontes dá-me o presente,
agradeço, ele acaricia-me a face, louva o meu bom modo, diz-me para não ter
medo, desmaiar toda a gente desmaia, até é bom sinal, é o corpo a dizer que não
aguenta mais. E com isso fico eu sentado a chupar rebuçados.
Em pé,
meu pai e os outros fazem roda em volta do senhor Pontes, que dá os últimos
retoques ao cabelo do cliente e conta que no hospital os médicos lhe garantiram
que o seu ataque de coração, dias depois, tinha sido causado por aquele grande
choque. Mas que também era um bocado culpa dele. Um homem de tanta experiência
com mortos devia saber que às vezes lhes ficava muito ar nos pulmões e podia
causar aquele barulho. Pois tinha escapado por um triz, mas fez jura de nunca
mais tocar num morto. Amigo ou família, pouco lhe importava, nunca mais.
- A
mim também já aconteceu uma boa - diz o cliente, mostrando a mão esquerda onde
faltam três dedos, e dando uma piscadela de olho na minha direcção, como que a
estabelecer entre nós uma cumplicidade, ou para evitar que eu cause mais
transtorno.
Contudo,
ou por falta de talento de narrador, ou porque a sua mímica trai falsidade,
sigo desinteressado a história que ele conta e tenho a impressão que meu pai e
os outros só por cortesia lhe prestam uma atenção de circunstância. Virando um
momento as costas para que o senhor Pontes lhe escove o casaco, o homem conta
uma história complicada de fuga para o Brasil, pouco mais que garoto, duas
semanas escondido no porão de um cargueiro, e como o tinham descoberto quase
morto de sede e de fome.
Depois
cadeia e anos de pobreza, até que um golpe de sorte no Mato Grosso lhe tinha
trazido a fortuna.
Sobre
essa fortuna começa ele a dar detalhes tão inverosímeis que os presentes se
entreolham e, para disfarçar o embaraço, uns acendem novos cigarros, outros
sentam-se, o senhor Pontes vem para junto de mim, afaga-me a cabeça e pergunta
baixinho se os rebuçados me sabem, diz que também são bons para a tosse.
Embalado
pela própria fantasia, o homem torna-se mirabolante. Ergue os braços a indicar
a grandeza dos seus prédios, abre-os para que se compreenda a vastidão dos seus
empórios, agita-os na contagem febril dos ganhos. Fala de minas de ouro, de
expedições, de tribus que vivem escondidas no mais remoto do Amazonas e só ele
soube encontrar.
Entretanto
fez-se noite, acenderam-se as luzes, meu pai e os outros continuam a fumar,
escutam-no sem interromper as suas patranhas. Porque não podem ser senão
patranhas. Eu próprio o reconheço, porque já li livros assim, cheios de
mentiras grosseiras, daqueles onde nem sequer uma vez o coração palpita de
entusiasmo ou de medo. Chupo os rebuçados.
Como
meu pai fica, tenho de ficar, e à falta de melhor continuo também a ouvir o
homem, surpreso de que as peripécias sejam tão claramente falsas, as cenas tão
falsamente coloridas, que os seus personagens tenham apenas uma animação de
robertos.
Ele
fala agora do Amazonas, do rio, da floresta, dos milhões ganhos no comércio da
borracha, conta a história de amor que tinha sido o começo da sua desventura:
um marido ciumento fizera-lhe uma emboscada e atirara a matar, mas ele, graças
a Deus, tinha tido presença de espírito bastante para desviar a espingarda e
receber nos dedos a bala destinada ao peito.
Num
gesto desnecessário mostra mais uma vez a mão decepada, ao mesmo tempo que com
a outra despendura o sobretudo do cabide, murmurando que depois tivera de lutar
durante anos, e por fim regressara ao país sem vintém. Felizmente a sorte
sorria-lhe de novo. A sua ideia era de retornar em breve ao Brasil, a ver se
com a ajuda de advogados ainda salvava alguma coisa do muito que lhe tinham
roubado.
-
Quanto devo? - pergunta ele bruscamente ao senhor Pontes, abrindo a carteira e
retirando uma nota de cem.
O
barbeiro responde quanto é, dá-lhe o troco, alcança-lhe o chapéu que ele ajeita
na cabeça, resmungando "É assim a vida. Vamos à manja", despedindo-se
depois com um "Boas-noites, meus senhores. Adeus menino."
Se
fosse cliente certo saberia que é preciso segurar a porta para que ela não
bata, mas no momento em que desaparece na rua, o estrondo do fechar, seguido
pelo retinir dos vidros, torna mais penoso o silêncio em que nos deixou.
- Que
aldrabão! - diz o senhor Lemos irritado. - Já os tenho visto grandes, mas este
leva a palma!
-
Coitado - acalma meu pai. - Com certeza é dos que quando ouve uma história não
quer ficar atrás.
O
senhor Pontes sorri, apoiado à vassoura com que vai varrer o soalho:
- Então vocês não
reconheceram o sujeito? Não o tiraram pela pinta? Eu não me quis dar por achado
enquanto ele esteve aqui, mas este é o famoso Almeida da Facada.
- O
Almeida da Facada! - ecoam alguns dos presentes, enquanto a boca dos outros,
mesmo a de meu pai, se abre de pasmo.
- O
próprio - confirma o barbeiro. - O maior vigarista de todos os tempos. O tal
que sabe embrulhar as pessoas de tal jeito que os juízes nunca conseguem
metê-lo na cadeia.
- Ora
esta! - diz o aprendiz, retirando a vassoura das mãos do patrão. - E eu a
acreditar tudo! Até me estava a dar pena que um homem assim, um senhor, tivesse
passado necessidades. Ora esta!
O
senhor Pontes afaga-me mais uma vez a cabeça e diz que, como se fez tarde, o
corte do cabelo tem de ficar para amanhã.
- A
que horas é a festa na escola?
- Às onze - responde meu pai.
-
Então traga-mo cá por volta das nove, nove e meia. Corta-se-lhe o cabelinho,
deita-se-lhe brilhantina, pômo-lo todo janota. Às nove e meia chega. Guardo-lhe a vez.
O Cento e Cinco, um colega
de meu pai só conhecido por essa alcunha, e a quem eu, sem compreender a
hilaridade que causo, me habituei a tratar por senhor Cento e Cinco, diz que
compreende que o Almeida da Facada seja vigarista, cada um ganha a vida como pode
ou como sabe. E vigarista há-os em toda a parte. Do mesmo modo que em toda a
parte há ladrões, há putas, há paneleiros.
- E
padres - interrompe o senhor Lemos, sempre ácido contra a religião.
- E
padres. Tem de haver de tudo, porque o mundo é assim. Mas o certo é que o
sujeito me meteu pena. Não pelas aldrabices, mas pela mão. Se me visse sem três
dedos acho que dava em maluco. Uma vez sonhei que me tinham cortado um braço e
acordei aos gritos, tão assustado que caí da cama abaixo. E se lhos cortaram
com um tiro...
- És
mesmo um patinho, Cento e Cinco - diz o senhor Pontes. - Então julgas que o que
ele contou é verdade?
- Não
é isso, mas para ficar sem os dedos...
-
Ouve. Oiçam...
Só o
senhor Pontes sabe criar um suspense
assim. Em vez de continuar logo acende um cigarro, apaga o fósforo com uma
sacudidela floreada, depõe-o no cinzeiro, aspira consolado o fumo.
- Ele
em rapaz andou uns dois ou três anos de embarcadiço nos navios da Colonial. Foi
aí que lhe puseram a alcunha de Almeida da Facada. Sabem por quê? Porque quando
lhe dava na veneta, mal se via num porto estrangeiro espetava ele próprio uma
faca no braço e ia fazer queixa de que o tinham esfa-queado. Com todas as
encrencas de polícia e de hospital, o navio ia-se embora e ele ficava por lá a
gozar o dinheiro do seguro. Até que deu nas vistas e a companhia o despediu.
Depois
andou de trolha, foi ambulante e por fim meteu-se a estivador.
O
senhor Pontes faz uma pausa mais longa, chupa o cigarro. Eu tenho um mau
pressentimento e se pudesse pedia-lhe que não contasse mais. Mas o seu talento
de narrador é tão grande, e a minha fantasia vive tão sequiosa de imagens e
vivências, que no momento em que ele continua, mais uma vez me deixo hipnotisar
e sou o Almeida da Facada.
Saio
de casa pelo cinzento da manhã, caminho pela beira-rio, entro num caíco, subo a
escada do portaló. Oiço os barulhos da maquinaria. Enchem-se-me os pulmões com
o cheiro do pês, das tintas, dos óleos, dos fumos. Agarro os fardos que pendem
do cabo do guincho, guio-os da borda para o convés, e com gestos de
polícia-sinaleiro - braço para cima, braço para baixo, "Alto!" -
aviso o maquinista do guindaste e os colegas no fundo do porão. Sinto no corpo uma fadiga
extrema.
- Ele
andou nisso uns tempos - prossegue o senhor Pontes. - Mas como se não queria
sujeitar a trabalho pesado, do que é que se lembrou? Ora digam lá, do que é que
o sacana se havia de lembrar?
O
senhor Pontes olha em redor, mas ninguém responde, ninguém quer quebrar o
encanto. E enquanto a sua pergunta parece ter-se materializado, pender no ar,
ele tira do armário uma garrafa de aguardente quase cheia e acena ao aprendiz
para que traga copos.
Bebem
em silêncio, uns com pequenos sorvos, outros de dois golos. Sopram, estalam a língua a
saborear.
- Da boa, hein?
Acenam que sim e ele volta a encher os copos, que agora,
por decência, ninguém se apressa a beber. O senhor Pontes guarda a garrafa,
volta-se, acciona o pedal da cadeira, endireita-a, apoia-se nela.
- Pois
o gajo sabia que o seguro pagava os acidentes e deve ter andado a magicar. Mas
uma aleijadela ou um lanho não dariam muito. Um dedo também não. Dois
dedos? Pelos jeitos resolveu que fossem três e combinou a coisa com o Vesgo.
Vocês lembram-se do Vesgo? Um
magrito que trabalhava na estiva do senhor Moreira, se meteu depois a comunista
?
- E
andou na guerra da Espanha? - pergunta o senhor Lemos.
- Esse
mesmo. Quando se descobriu a marosca já o seguro tinha pago e com certeza
ninguém esteve para se incomodar, porque senão os tinham metido ambos na
cadeia.
Esperaram
que viesse um carvoeiro alemão, que pagava mais, e uma manhã ao começar a
descarga, quando no convés não havia quase ninguém...
A voz
do barbeiro extingue-se lentamente. Estou perto da amurada, atento aos sinais
do homem do guincho, que com dificuldade distingo no nevoeiro. O balde sai do porão, sobe
ainda. Apanho a corda que pende da base, travo o movimento, guio
o balde devagar para cima da barca, atento a que não me apanhe alguma pedra de
carvão. As maiores, pesadas bastante para matar um homem, estilham-se aos meus
pés com o estrondo de granadas.
O
Vesgo espera que elas acabem de cair, e enquanto me debruço na amurada para
ajudar os da barca a dividir a descarga, pega ele na pá e vai amontoando os
restos. Prometi-lhe dois contos. O sinal é quando vir que guio o balde só com
uma mão e apoio a outra no rebordo da amurada.
Nesse
momento o homem do guincho tem de olhar para cima, a certificar-se que o balde
está fora de borda, e se não passar ninguém não vão dar por ela, digo que foi
uma pedra que mos esmigalhou. O balde passa. Debruço-me, espalmo bem a mão,
ouço a pá zunir perto da minha cabeça e vejo o sangue, mas não sinto dores nem
coisa nenhuma.
Dou um
grito, o do guincho vem a correr, e o Vesgo, como quem não compreende nada,
aponta os dedos espalhados no convés.
Acordo
na farmácia e ouço que telefonam para o médico. Que é uma urgência. Não pode
ser normal uma criança perder os sentidos assim sem mais nem menos, logo duas
vezes numa só tarde.
Meu
pai ajuda-me a despir, o médico manda-me abrir a boca e mostrar a língua,
examina-me a garganta, os olhos, diz-me que abane os braços, ausculta-me o
peito, as costas, faz-me levantar a cabeça, baixá-la, vira-a para um lado, para
o outro.
O
senhor Pontes e os outros ficaram para ver e olham curiosos à espera do
resultado. Mas o médico diz que me acha bom. Talvez pouco desenvolvido para a
idade, mas bom. Que me dêem leite, me façam deitar a horas, e não há-de
ser nada.
Nessa
noite não consigo dormir logo. São muitas as imagens, caóticas as impressões,
cada vez que tento rememorá-las numa certa ordem logo outras se sobrepõem. As
sombras do meu quarto parecem animar-se. Por entre a porta meio aberta do
armário vejo que um fato pendurado numa cruzeta vai inchando aos poucos e toma
forma humana.
Meus
pais estão ainda na cozinha e levanto-me para pedir que me dêem água. Uma
desculpa. Ambos me olham preocupados, como que a temer que eu volte a cair redondo,
pouco convencidos quando lhes digo que me sinto bem.
Mais
tarde, quando se vão deitar, abrem a porta do meu quarto e espreitam. De olhos
fechados, as mãos cruzadas sobre o peito, eu durmo e minha mãe enternecida - "Coitadinho!" - vem-me
beijar, arranja os cobertores.
Meu
pai, menos expansivo, deve ter ficado à porta, porque o murmúrio melancólico da
sua voz parece vir de longe, dando a impressão de continuar uma conversa
anterior:
- Que
havemos de fazer com um menino assim? E se fica um fraquezas a vida inteira?
Não anda à pancada, não pode ver sangue, assusta-se com tudo! Que futuro há-de
ser o dele?
*
* *