Nos meus anos de tropa Madame Blanche, num primeiro andar da Rua da Glória, distinguia-se
entre os bordéis de Lisboa pelo grande número de mulheres, o ambiente e, paradoxalmente,
o decoro. Tenho memória de um desmedido salão cheio de sofás e banquetas, onde
raparigas de ar recatado, sozinhas ou conversando em pequenos grupos,
aguardavam o bel-prazer dos clientes. Havia algumas mesas, alguns móveis
aparatosos, uns quantos quadros discretamente eróticos e pesadas cortinas que,
mesmo nos dias soalheiros, mantinham uma agradável penumbra.
Para assegurar uma certa selecção da clientela, porque
os preços não eram excessivos, a própria madame Blanche sentava-se a uma
escrivaninha junto da porta e, espreitando pelo ralo, decidia se o aspecto do
freguês lhe inspirava confiança.
Os recusados tinham o mau costume de por despeito
urinar na escada, cuja madeira, impregnada ao longo dos anos de mijo e
creolina, acabara por dar à entrada um odor estranho, mas de forma nenhuma
repelente, antes agradavelmente familiar.
A partir das duas da tarde e noite fora Madame Blanche não era apenas bordel,
mas local de encontro, de cavaqueira, clientes assíduos que liam o jornal,
tratavam negócios e confiavam às raparigas e à patroa os detalhes dos seus
contratempos e achaques.
De vez em quando, feita a escolha com um gracejo ou
um sorriso, um deles subia ao andar de cima. Alguns bebiam mais um café, mais
uma cerveja, e esperavam ainda, enquanto outros rezingavam se a sua favorita
não estava ou se ela, "infiel", lhes não guardava a primazia e ia com
outros.
Travavam-se amizades, trocavam-se confidências, ria a
gente com as anedotas, e desde que se obedecesse às duas regras principais da
casa - madame Blanche não queria "porcarias" no salão, nem admitia
bebedeiras - passavam-se ali momentos agradáveis, tinha-se a ideia de pertencer
a um clube que, além de acolhedor, oferecia a vantagem de não exigir entrada
nem impor a obrigação do "consumo".
Infelizmente, duas vezes por mês, quando um famoso
navio de passageiros italiano da linha da América (cujo naufrágio, anos mais
mais tarde, viria a ser uma das grandes tragédias marítimas do nosso tempo)
tocava em Lisboa, madame Blanche fechava a porta à freguesia habitual.
O estabelecimento era então reservado para os oficiais do dito paquete que, a
acreditar nos boatos, aí faziam grandiosas orgias, onde, dizia-se. também os
passageiros, tanto homens como mulheres, tomavam parte.
Madame Blanche preferiria que as coisas se passassem
doutro modo, porque no seu próprio dizer os italianos eram "uns
porcos", além de que no dia seguinte, exaustas, as raparigas "não
valiam um pataco." Mas como esses dois dias lhe rendiam mais que o resto
do mês, tinha de recusar os clientes certos que, ao dar com a porta fechada,
caminhavam morosamente para o Rossio em busca de um café e de alívio para o seu
estado de almas penadas.
Uma tarde, ao subir a escada, descortinei no patamar
um rapaz a espreitar curvado contra a porta.
- Fechada - disse ele irritado. - Os sacanas têm outra
vez a casa por conta e estão no banzé. Olha aí.
Curvei-me também, mas só vi o vestíbulo vazio.
Ouviam-se sons longínquos de música e risos, uma gritaria alegre de festa.
- Então? - perguntou ele.
- Não se vê nada.
- Pois eu ainda agora mesmo vi passar a Simone em
pêlo, com um chicote na mão, montada num sujeito que ia de quatro patas aos
guinchos e aos coices, a fingir de cavalo.
Ao mesmo tempo que falava voltou a espreitar, mas como
de facto também não via mais nada, resolveu descer as escadas comigo e
acompanhar-me ao café.
Na rua estendeu-me a mão, disse que se chamava Carlos
Palma e era miliciano em Caçadores 5.
Como era domingo e ambos estávamos livres, conversámos durante o resto da
tarde e acabámos por jantar juntos.
Filho de lavradores de Alcobaça, gente abastada em
pomares e vinhas, o Palma era jovem demais para ter história, mas falava pelos
cotovelos.
Do muito que contou recordo o caso de um tio que, em
moldes clássicos, se tinha apaixonado por uma mulher da má vida que, pouco a
pouco, lhe fora "comendo" os bens e o deixara tão depenado que o
pobre vivia da caridade da família. O exemplo, disse o Palma, era assustador
bastante para que jamais deixasse que lhe viesse a acontecer semelhante coisa,
mas o vício com certeza vinha de família.
- Conheces a Rosa? - perguntou ele inesperadamente. -
Uma alta, de cabelos castanhos, olhos castanhos.
Desconhecia e ele estranhou, porque na Madame Blanche era das raparigas que
dava mais na vista. Pois desde a primeira vez que tinha ido com ela para a
cama, não aguentava passar dia sem a visitar. E se não estava, ou ia com outro,
parecia-lhe que dava em doido. Por isso andava com ideias de a pôr por conta.
Era só ela querer e a patroa deixar, porque o ordenado junto à mesada que lhe
davam os pais, bastava à larga para dois.
- Palavra que a não conheces? Nunca foste com ela?
Repeti que não, irritado com aquela insistência, e ele
abraçou-me aliviado, dizendo que não tinha dúvida que ficávamos amigos. Se um
dia calhasse apanhar na rua um dos gajos com quem ela ia, não lhe deixava um
osso inteiro. E não duvidei, porque o Palma, além de forte, tinha nos olhos um
brilho de loucura.
Voltámo-nos a ver anos depois em Paris, onde passara a
morar. A nossa camaradagem tinha-se mantido, mas pouco mais que superficial,
encontros fortuitos, uma carta de vez em quando. Para ele a vida militar
parecia ter sido o momento alto da sua vida, e se se referia às amizades então
travadas descaía numa linguagem melada e romântica, cheia de "gajos
porreiros", "belas farras", "noites de pândega."
- Vamos almoçar. Pago eu.
Olhei-o com surpresa e alguma suspeita, porque não o
tinha por mãos-largas, nem me lembrava que jamais me tivesse convidado.
Tomámos um táxi. Absorto nos meus pensamentos, só já
dentro do restaurante me dei conta do luxo do estabelecimento para onde me
levara e onde, a avaliar pelos rapapés e cortesias, era cliente estimado.
O chefe de mesa, ligeiramente debruçado para
apresentar o menu, sussurrava recomendações sobre os diferentes pratos,
tratando-o por monsieur Palmà,
sorrindo-lhe com a deferência que se guarda para o cliente magnânimo nos gastos
e nas gorjetas. Monsieur Palmà!
- Também queres lagosta? Então vamos os dois neste Sauté de homard aux deux poivres et au
gingembre. E de vinho?
O sommelier
aproximou-se para recomendar o Pommard 61,
ele aprovou, eu aceitei com um encolher de ombros, desconfiando que o almoço
não havia de terminar sem que se esclarecesse o fito de tanta e tão inesperada
generosidade. Mas por enquanto íamos debicando amuse-gueules, sorvendo goles de uma mistura de sumos exóticos,
licores e champanhe, com um ligeiro odor a sabonete e a consistência de gemada.
O Palma recostou-se na cadeira e sorriu, tentando
afastar o meu humor sombrio:
- Nós aqui na bela Paris, o sol a brilhar, boa mesa,
boa pinga, e o camarada do 7 de
Infantaria com cara de enterro! Arriba, homem! Desabafa!
Eu tinha nesse dia razões de sobra para ideias
tristes, mas avesso a interrogatórios, e sem ter com ele a confiança que dispõe
a confidências, pareceu-me mais seguro levar a conversa para o seu tema
favorito. Falámos da tropa. E de Lisboa. E de Madame Blanche.
- Ah! A Madame
Blanche! Não é nada do que foi, sabes. A madame trespassou o negócio. A
casa está rasca, vai lá quem quer. Entram marujos, entram caixeiros... Ainda te
lembras da Rosa?
Mais para lhe dar motivo de continuar do que por
espírito de contradição, respondi que me não lembrava.
- Nem daquele caso do meu tio Miguel? Que por causa da
amante quase acabou a pedir esmola?
- Vagamente.
Contou tudo outra vez, e que quando por fim pusera a
Rosa por conta, também ela o depenara em dois tempos. Isso, porém, eram águas
passadas. Com a herança de uma avó recompusera as finanças, tinha escapado aos
pais e a Alcobaça, estava agora nuns negócios que, se tudo corresse bem, o
tornariam milionário.
- A nous deux,
Paris!- exclamou ele entusiasmado.
Não perguntei que negócios eram, e ele também não mo
contou, distraído talvez pelo chefe de mesa que voltara para perguntar se, como
de costume, monsieur Palmà desejava
que com o café fosse servido o Baron
Otard 1929. O Palma disse Oui, e
pediu charutos.
- Mesmo assim tenho boas recordações da Rosa. Mau
carácter, mas corpo excepcional. E então na cama, meu velho!... De se lhe
tirar o chapéu. Absolutamente. Se bem que a rapariga que tenho agora, a
Colette, não lhe fique atrás. Excepcional! E uma francesa sempre é outra coisa.
Tem mais cachet, não achas?
Concordei, ao mesmo tempo que me ocupava a acender o
enorme Monte-Cristo que ele me
aconselhara. Com o conhaque brindámos ao nosso reencontro, à felicidade mútua
e, a seu pedido, brindámos ainda para que no mundo se não acabasse a raça das
belas mulheres.
Numa transição brusca quis ele saber como iam os meus
negócios, e quando lhe respondi que iam mal assombrou-se.
- Então vão mal?
Confirmei que assim era. Por mais que tentasse, há
dois anos que a roda da minha fortuna não fazia senão desandar, tudo o que eu
empreendia dava em fracasso.
- Isso é o diabo - disse ele, num tom pesaroso demais
para ser sincero. - Mas talvez eu te possa dar uma oportunidade. Tenho aí num
armazém um lote de botas de pára-quedistas. Cinco mil pares. Fabrico alemão e
ainda na embalagem de origem. Lona de primeira. Boas para o deserto ou para a
África. Uma pechincha a nove dólares o par. Que te parece?
Tive que o desiludir, porque nem o calçado era negócio
que eu entendesse, nem dispunha de capital.
- Então nada feito, meu caro! - gargalhou ele. - Já
que não me compras o raio das botas, ficas-me a dever um almoço. Eu daqui
vou-me meter na cama com a Colette.
Na rua ainda gracejou que não me esquecesse de dar
recomendações suas às belas holandesas:
- Apareço um dia por lá e levo-as todas a eito!
Do terraço do hotel a vista sobre o lago de Genebra
era a que se espera de um postal suísso e por um instante esqueci a multidão
sentada à minha volta, corri os olhos pela verdura das encostas, pelas montanhas
ainda com neve nos cumes, os meandros do rio, a cidade banhada de sol.
O pigarro do Palma tirou-me da contemplação e, ao
encará-lo, ouvi-o dizer num desnecessário sussurro:
- Não tarda. Agora mesmo estava a falar com o
porteiro.
E de novo, como a temer que me tivesse equivocado, ou
por qualquer razão não tivesse sido sincero, repetiu que estranhava que eu não
conhecesse o Garcia:
- É o Garcia! O Garcia das minas de cobre, aquele caso
de que no ano passado se falou tanto nos jornais.
O homem veio para nós, sorridente, de fato branco,
camisa verde e gravata a condizer, cinquentão gorducho, as ondas do cabelo
domadas pela brilhantina. Palma murmurou as apresentações. Apertámo-nos as
mãos, ele sentou-se vagarosamente na cadeira, cuidadoso no alinhar do vinco das
calças, recusando beber connosco.
- Obrigado, não tomo nada. E desculpem, mas tenho
pouco tempo. Estou aí em negociações com os sobrinhos do sheik de Qatar, que vieram com a comitiva. Alugaram um andar
inteiro.
Um grupo de árabes de albornozes brancos passeava na
esplanada de cá para lá, alguns em conversa animada, outros escutando com
deferência e movendo nervosamente entre os dedos rosários de âmbar. Ele
acenou-lhes, mas nenhum correspondeu.
- É aquela mania dos óculos muito escuros. Não
enxergam nada. Além disso estão meio incógnitos. Coisas de armas, de
petróleos... Temos encontro marcado com o ministro para hoje à tarde.
Porque me não mostrava impressionado, ou simples
antipatia, certo é que o homem praticamente me virou as costas e, ignorando a
minha presença, começou com o Palma uma longa conversa de recordações e
esperanças, de planos para quando lhe sobrasse o tempo. Maus negócios que
tinham acabado bem, negócios fracos que a sorte tornara rendosos, esquemas com
que um dia, havendo accionistas, ele se propunha realizar uma fortuna igual à
de Crésus. Ou à de Onassis, o seu exemplo favorito.
Na minha opinião o Palma tinha feito asneira em me chamar.
Eu conhecia o género de conversa e o tipo de homem de negócios que vive de
expedientes, envolto num vocabulário de mistério e névoas como o da feitiçaria.
"Se o nosso grupo estiver de acordo... Quando os financeiros chegarem
aí..."
Não há grupo, há escritórios nas salas de trás de
prédios caducos, com o aluguer em atraso, uma mesa e duas cadeiras, máquinas
poeirentas, uma aparência de arquivo. Telefones desarranjados por falta de
pagamento. Tramóias. Imposturas. E os financeiros não estiveram, não estão, não
vão estar. Porque existem apenas nos seus sonhos, no desejo do golpe que torne
sólida a corda bamba em que vivem. "Vamos lá ver se desta vez dá certo. Da
outra não deu, mas esteve por um fio."
Assim se arrastam, desvairados, fazendo promessas
impossíveis, produzindo documentos onde sempre falta um detalhe essencial. Ou
é a data que não corresponde, ou a assinatura que ninguém legalizou, o carimbo
tão mal falsificado que constrange. Vigaristas desses. Se estão na mó de cima
nenhum gasto lhes parece excessivo, nenhuma largueza os assusta, porque é assim
que compensam os momentos de terror quando os lesados os defrontam, ou a cadeia
se lhes torna uma perspectiva real.
O Garcia recordou como por acaso a minha existência e
quis saber se eu vinha muitas vezes a Genbra.
- De longe a longe.
- Genebra é o centro, é onde está o dinheiro! -
exclamou ele. - E o dinheiro é o poder! Aqui é que se decide tudo.
Eu disse que sim, por desfastio, distraído com o
repuxo do lago, vagamente descontente com as voltas da minha vida e irritado
por ter aceite o convite do Palma.
Desde o encontro em Paris não nos víamos há mais de um
ano e ele tinha telefonado uma noite, cheio de urgência, dizendo que me
apressasse para Genebra onde iríamos encontrar o famoso Garcia, o homem que
tinha entrada junto dos poderosos. O Garcia, de quem uma simples palavra de
recomendação era o mesmo que meio caminho andado para se chegar a rico. Inexperiente
e algo ingénuo, no dia seguinte tomei o primeiro avião.
O homem dos famosos negócios decepcionava. Na
aparência, no estapafúrdio do traje, na fala e nos maneirismos, era vigarista
de quinta categoria, parecia-me mais capaz de roubar uma anciã numa viela, do
que ter cabeça bastante para inventar um golpe ou defrontar um perigo. A sua
fama talvez existisse apenas na imaginação do Palma.
Julgando que eu não tivesse compreendido, ou para
melhor me convencer, Garcia repetiu que era em Genebra que os negócios do mundo
se decidiam.
- Porque é aqui que está o dinheiro - retorqui,
cansado demais para disfarçar a ironia.
- Exactamente.
A minha resposta deve tê-lo indisposto, pois logo em
seguida se levantou e, esticando de novo os vincos das calças, anunciou que
sentia, mas o secretário estava a acenar que o sheik o esperava.
- Vocês desculpem, mas tenho de ir embora. A ver se
doutra vez nos encontramos com mais tempo e conseguimos arranjar alguma coisa.
Depois de um aperto de mão flácido vimo-lo caminhar em
direcção à entrada do hotel, cumprimentando à esquerda e à direita, parando
junto dalgumas mesas para um gracejo, uma troca de palavras.
- Pena que não se tenha podido começar nada, porque
com uma ajuda dele, uma apresentação... O gajo conhece meio mundo. Não
acreditas, mas ele é mesmo importante - suspirou o Palma.
- Importante uma fava.
Palma olhou-me constrangido, perguntou se eu queria
mais café, ou uma cerveja, uísque. Eu não queria coisa nenhuma. Estava a deitar
contas à vida, indeciso entre se valia a pena correr para apanhar o avião da
uma, ou flanar pela cidade e regressar a casa no das sete.
- E agora? - perguntou ele.
- Agora nada. Tu voltas para Paris, eu volto para
Amsterdam.
Ocorreu-me ainda fazer um remoque sobre o dinheiro
gasto e o tempo perdido, mas calei-me, ao fim e ao cabo estava ali de livre
vontade, talvez mais iludido pela minha própria ingenuidade do que pelas
incitações dele.
- O diabo é que tenho um problema. E sério.
Olhei-o preocupado, porque o tom não admitia dúvidas.
- Que problema?
A sua sorte também desandara. Gasta a herança,
perdidas as amantes - detalhes que eu ignorava - tinha posto no encontro com o
Garcia uma esperança desmedida: arranjar ali de imediato com ele e comigo um
negócio que o salvasse. Falhada a coisa, não tinha alternativa e em Paris
estava "queimado". Dormia por favor num quarto. Nem sequer lhe
sobrara dinheiro para comprar bilhete de ida-e-volta. Retornar a Alcobaça sem
vintém, com o rabo entre as pernas? Não, muito obrigado. Mais depressa se
atiraria ao lago.
Como não tinha outro modo de o ajudar, propus dar-lhe
o dinheiro que me sobrava e não era muito, mas suficiente para uma segunda
classe no comboio para Paris.
Fomos a caminho da estação. A cavaquear disto e
daquilo, necessitados de palavras que cobrissem os nossos pensamentos e
exorcisassem os nossos medos.
- Lembras-te daquele belo almoço?
- Esplêndido almoço.
- Bons tempos, hein?
- Bons tempos.
- Belas farras na Madame
Blanche também, hein? Grandes noites de pândega!
- É verdade - e dizendo isto puxei-o mais para dentro
do passeio, porque às vezes cambaleava como bêbado e os autocarros quase o
roçavam. Na estação despedimo-nos com fortes abraços e votos de felicidade. Assim
que as coisas corressem bem comíamos outro grande almoço.
- Prometido?
- Prometido.
No táxi, a caminho do aeroporto, e depois no avião, ao
rememorar os acontecimentos do dia dei-me conta de como é verdade que, em
tempos difíceis, a solidariedade esmorece. Os meus problemas eram demasiado
grandes para que me preocupassem as aflições alheias, e ao virar-lhe as costas
na estação, o Palma, julgava eu, desaparecera de modo definitivo da minha vida.
Mas, como ele contaria depois, precisamente no momento
em que nos separámos a sorte decidira bater-lhe à porta.
Tinha esquecido a mala na recepção do hotel e ao
voltar para buscá-la encontrara de novo o Garcia, mas um Garcia descomposto e
exausto, a gritar-lhe enraivecido:
- Onde diabos é que você se meteu!
- Fui para a estação e o caso é que esqueci aqui a mala...
- Qual mala, qual estação! Vamos ao sheik, homem! O sheik quer as botas!
- Mas eu já não as tenho. Empenhei-as.
- Desempenham-se!
O chefe de mesa do Ritz curva-se junto de monsieur Palmà para lhe entregar o menu,
mas ele, entusiasmado com a narrativa, a sua mão a apertar-me o braço, fá-lo
esperar:
- É ou não é o que se chama sorte?
- De facto é - concordo eu.
- E desde então tem sido sempre ao para cima! Nas
Arábias, tudo quanto é soldado calça botas minhas. Queres lagosta como da
outra vez?
Digo que sim, invejoso de tanta prosperidade, e oiço-o
encomendar de novo o Sauté de homard aux
deux poivres et au gingembre, acompanhado agora de um Puligny-Montrachet 63.
- Sabes uma coisa que me dá mesmo pena? E às vezes até
sonho? - continua ele, ao mesmo tempo que saboreia o kir. - É não ter vinte anos. E não estar em Lisboa. A esta hora,
meu velho, ninguém me segurava! Fazia como os italianos, fechava-me dois dias
na Madame Blanche!
* * *