Uns acharão graça, para outros será motivo de troça. Depende isso do carácter, da sensibilidade, sentido do humor, ou em que medida vê no próximo o seu semelhante.
O Guilherme e o Alípio, além de vizinhos, são como eu atormentados por cãibras. Quem delas sofre não precisa de explicação. Os outros imaginem o que sentiam os condenados à tortura da polé nas masmorras do Santo Ofício.
Daí que as nossas conversas, passada a do estado do tempo, recaem sobre o achaque em que as pernas, numa amostra das penas do Inferno, se nos retorcem apertadas pela turquês do Diabo.
Uns dizem que é falta disto ou daquilo no sangue, ou nervos, vitaminas a menos, e assim por diante. Certo é que nem as meninas da farmácia conhecem remédio que faça bem ou pelo menos dê alívio.
Estávamos nisso há anos, até à semana passada, quando ao começo da noite a Hilda bateu à porta. Surda, sorridente, segredeira, escondia as mãos sob o avental, o que de certo modo lhe dificultou o ritual beijoqueiro.
Num sussurro explicou então que vinha por causa das cãibras, mas avisando que eu teria de guardar segredo. Feita a jura, explicou que há uns dois meses o Guilherme deixou de sofrer as dores. E nem ele compreende o milagre, nem ela lhe vai confessar, que isso aconteceu devido à promessa que fez à Santinha de Arcozelo, e a um remédio que a irmã lhe mandou de França.
Sabendo quanto sofro, mas às escondidas do homem, que é um unhas-de-fome, a Hilda encomendara para mim o mesmo remédio, e ao senhor padre também já tinha pago igual promessa à santinha.
Dizendo isto tirou de sob o avental o objecto, explicando que o devo desembrulhar para que espalhe o cheiro milagroso, e tem de ficar aos pés da cama entre os cobertores.
Agradeci, jurei que assim faria, mas de facto não sei que destino dar a este “Savon de Marseille, au beurre de karité”.