domingo, outubro 22

A escrita em dia

 

O mais provável é que seja sintoma da muita idade, ou então um excepcional fenómeno de mudança, pois com o aumento dos anos a norma é que a memória falhe, não que de súbito se ponha a reavivar acontecimentos de décadas longínquas e, estranho bónus, insista nos detalhes, sobretudo nos que mais mágoa ou prejuízo causaram.

Ando a contar mortos. Não todos, só este e aquele, às vezes também uma ou outra, tornando actual a ocasião de acertar contas, e finalmente tivesse chegado a hora de pôr a escrita em dia. Revivo assim momentos de traição e falsidade, ocasiões perdidas, ódios e ciumeiras, questiúnculas. Como se misteriosamente fosse agora a melhor altura de os interrogar. Mesmo sabendo que é impossível descobrir o que então quiseram de mim, ou confessem porque razão se atravessaram no meu caminho, o motivo da inimizade escondida, das rasteiras, das armadilhas, do falso louvor, das cortesias de fingimento.

Digo os nomes e vejo os rostos, recordo as maneiras. Quedam-se eles inexpressivos e silenciosos, imóveis, manequins em montra de loja, dando ideia de que ao deixar a vida tenham também descartado o que foram e fizeram, o que sentiram, as molas que os empurravam, os temores, os sonhos e ambições que tinham.

Conto-os, porque num passado já muito distante contaram, fizeram parte de mim, dos meus dias e andanças, mas também por terem sido o que preferi não ser, porque deram os passos que com eles recusei dar. E ainda, porque em vez das ruas arejadas escolheram os becos e as vielas, a máscara, o esconso dos subterrâneos onde a luz não chega.

Surpreendo-me a recordá-los sem pesar, e vou-os arrumando, não como os viventes de carne e osso que foram, mas personagens da surpreendente e misteriosa ficção em que a vida por vezes se torna, aquela que escritor nenhum consegue pôr em livro.