sexta-feira, outubro 6

Boas-vindas (2)

 

A mudança, aliás, não se deu apenas no plano material, no qual passei do bom para o mau, mas em aspectos de que só muito mais tarde viria a poder apreciar a força do impacto.

Juntamente com a perda do conforto e da protecção do meu anterior status, resultou daí que, durante anos, passasse a olhar com um misto de medo e hostilidade o povo que me rodeava. Se eu tinha direitos, eles pareciam-me hipotéticos, e na minha posição de imigrante e estrangeiro pobre frequentemente o eram, como mais de uma vez me seria dado constatar.

Do mesmo modo também é certo que a realidade da democracia holandesa nada podia contra as minhas reacções, as quais decorriam em grande parte do ambiente social e político de desigualdade, desconfiança, opressão e autoritarismo em que me tinha criado.

Escondi-me, assim, atrás duma carapaça de ironia e distanciamento, mas na verdade temeroso de pôr a nu o meu desagrado e a minha incapacidade de adaptação. Triste também, e muito só, ao dar-me conta da quase doentia impotência de que sempre sofri para me associar ou pertencer. Como queria eu rumar sozinho num país em que tudo eram associações, igrejas e partidos?

Não rumei, deixei-me levar, e com mais ou menos sorte consegui sobreviver, mas numa existência que passou a desenrolar-se desde então em dois planos distintos, como a de duas pessoas habitando o mesmo corpo. Uma é o homem que acabou por perder o medo e se tornou mais brando na crítica ao povo a que escolheu pertencer.

Esse fala, partilha, convive e até sonha em holandês, orgulhoso de que se lhe tenha tornado tão sua a língua que ao primeiro contacto lhe pareceu áspera e falta de melodia. A outra é o escritor português que sou, o qual, bizarramente, «nasceu» na Holanda no começo da década de 60.

Das minhas primeiras tentativas de ficção guardo duas folhas de papel datadas do Verão de 1942, escritas com a laboriosa letra dos meus 12 anos. É nelas questão de um rapazinho no alto dum monte que se desespera por dali não ver o mar.

No começo da década de 50 veria publicados quatro contos num mensário provinciano, todos de um romantismo sombrio e cheios de preocupações sociais. Com eles estancou então a minha actividade literária. As centenas de artigos de jornal que então e depois escrevi, embora de prosa mais ou menos escorreita, não resultavam de um pendor para as letras, mas da necessidade de ganhar o pão.

Como escritor português viria, pois, a «nascer» na Holanda, no despontar dos anos 60, e se qualifico de bizarras as circunstâncias desse nascimento, é porque ele me parece ter derivado tanto de uma vocação, como da necessidade de resistir e me afirmar como pessoa, num meio que em muitos aspectos me era estranho e, com mais ou menos razão, eu ressentia como adverso.

Talvez que, ressalvando umas quantas ratoeiras fonéticas e sintáxicas em que continuo a cair, e o hermetismo do emprego do «de» e do «het», não me seria de todo impossível escrever na minha língua adoptiva. Simplesmente, o escrever na minha língua-mãe tornou-se-me a indispensável âncora com que me prendo às origens, aos meus antepassados, à condição de português de que não abdico.

No decorrer de mais de meio século, a maioria dos aspectos e das características da sociedade holandesa que de começo me surpreenderam, intrigaram e por vezes chocaram, como que se foram aplanando.