domingo, dezembro 4

Vê-se nas orelhas

 

É o que se chama ser apanhado pela própria ratoeira, e bem gostaria que a sua memória apresentasse as falhas que tem a do geral dos octogenários, mas a do Cardoso parece continuar imune aos estragos da idade, pelo menos no que respeita certos episódios de que guarda má consciência, medos que julgava esquecidos e de súbito o assaltam como se fossem do presente.

Semanas atrás no quarto de banho, a olhar distraído para o espelho enquanto fazia a barba, aconteceu-lhe reparar que a orelha esquerda, talvez porque dorme sempre para o mesmo lado, parecia achatada e diferente.

Pousou a lâmina, não fosse cortar-se, mas também sobressaltado com a recordação da tia Susana, que tinha morrrido de um AVC um dia antes do 25 de Abril. Irmã mais velha da mãe e um bocado mandona, talvez porque trabalhava no Lar, em miúdo tinha-lhe medo, e ficava agoniado se ela se chegava perto, porque cheirava a desinfectante. Solteirona, vinha sempre almoçar ao domingo, foi numa dessas ocasiões que a ouviu queixar-se que as pessoas continuavam a falar-lhe, mas tinha ideia que escondiam qualquer coisa.

Anos depois ouviu a mãe contar à viúva do Luís, que não tinha sido porque as pessoas não gostassem da irmã, mas por terem medo dela. Esse medo começara uma vez no café, quando disse que o pai da Sara não durava e ele morreu nessa noite. Depois foi a mãe do Abílio, a madrasta do Pires, o tio da Sabina, a avó do Antero, mais uns quantos.

Os mais atrevidos perguntaram-lhe se era dom, e ela tinha-se zangado. Qual dom, qual carapuça, qualquer um podia ver. Se os idosos começavam a ficar com as orelhas em ponta, nunca falhava: ainda aguentariam o dia, mas da noite não passavam. 

O Cardoso voltou a pegar na lâmina e encarou o espelho, aliviado de que ambas as orelhas parecessem achatadas. Se bem que, olhando melhor...