domingo, dezembro 11

A carta de ligeiros

 

Casos de tanta aflição daria mais descanso conseguir esquecê-los, mas ela vezes sem conta repete o seu, e agora, com os achaques da muita idade, ou numa inconsciente tentativa de explicar as dores e a submissão passada, fá-lo na terceira pessoa, assim a jeitos de telenovela, ou então inventando, ora uma prima ora uma amiga.

Na fantasia que nos “vende”, essa prima ou a amiga foi levada novinha para terras de  Castela, e lá ficou uns tempos a viver com um ricaço. Mas as saudades eram muitas, o velho maltratava-a, uma noite fugiu sem mais do que a roupa do corpo, e uma vaga ideia de que para lado ficava a estrada.

Acudiu-lhe um automobilista que a levou à fronteira, o resto do caminho fê-lo a pé, mas cala quanto demorou e o que depois aconteceu. Esse vazio preenche-o às vezes com episódios de telenovela, noutras alturas dando inesperados saltos no tempo, confundindo então o que viu com o que imaginou, mas cuidadosa em se manter no papel principal, deixando os comparsas na sombra ou na meia-luz.

Excepção a essa regra só de longe a longe, numa das poucas ocasiões em que  que parece ter consciência de que não deve exagerar nas peripécias, ou quando de súbito como que se envergonha e cai num silêncio, para logo depois repetir pela milésima vez a dor que é tirar a carta e uma única vez ter conduzido um carro.

- Ninguém acredita, mas foi assim mesmo! A ideia era dele, eu nem queria! Andei nas lições um meio ano, fiz o exame, deram-me a carta, nem sei explicar a alegria que senti. O que não tinha era coragem de lhe pedir que me deixasse guiar o carro. Mas uma tarde foi ele próprio que ofereceu. E lá fomos, mas não deve ter sido mais do que meia hora quando me mandou parar, aos gritos de que eu era um perigo, ainda caíamos na valeta. E nunca mais me deixou guiar. Nosso Senhor lho perdoe.