quinta-feira, dezembro 15

O homem de Alagoas

 

Foi séculos atrás, em Haia, o dia em que um político brasileiro, que eu só vagamente conhecia, me convidou para jantar.

Chique no traje e cuidado na cabeleira, despachados os salamaleques nem esperou pelo aperitivo para entrar no assunto. Estava eu ao corrente da sua nova posição?

Tive de confessar que não estava.

- Verdade? Não leu nos jornais?

O tom era o de quem sente ultrajada a sua importância, pelo que me pareceu mais prudente esconder-me atrás da falta de tempo, do que da falta de interesse.

Retomando o modo cordial, informou-me ele de que no estado brasileiro de Alagoas se preparava a eleição de um novo governador, e lhe coubera a honra de coordenar a campanha eleitoral do candidato que mais probabilidades tinha de sair vitorioso.

Continuou com uma palestra sobre a situação política dessa remota parte do Brasil, as forças em presença, quem apoiava quem e com que fins, as injustiças, as inimizades, os assassinatos, as traições...

Eu ouvia, acenava, cortês e intrigado, tentando em vão descortinar o motivo de tão elaborado discurso.

O sommelier abriu a segunda garrafa de Château d’Yquem, cheirou-lhe a rolha, deitou dois dedos do vinho num copo e, com modo sacerdotal, agitou, aspirou, provou.

Serviu o meu anfitrião que, depois de elevar o copo para melhor apreciar à contraluz a cor do líquido, também agitou, aspirou, degustou, dando com a língua estalinhos a acenar a sua aprovação.

Brindámos à saúde mútua. Brindámos à grandeza e à iminente prosperidade do Alagoas. Porque seria de bom augúrio, ele quis que brindássemos também pela vitória do seu candidato e amigo. Então, passando subitamente do tom jovial para um modo soturno, declarou que numa campanha eleitoral se gastavam rios de dinheiro.

Eu a concordar e, por empatia, pondo igualmente um modo soturno na minha atenção. Ora, se bem que o seu candidato fosse homem de grande fortuna e o apoiassem as forças que defendiam a ordem, a religião e o progresso, certo era que cada voto saía caríssimo. Os tempos tinham mudado, os eleitores já não acreditavam em promessas , para votar como se lhes pedia queriam pagamento a contado.

- Imagine você! Pedem trezentos, quinhentos cruzeiros por voto!

O satisfazer de tão desmesurada voracidade exigia fundos que excediam os do candidato e dos seus apoiantes, de modo que estes, depois de se terem informado junto de gente de experiência, o tinham enviado à Holanda em busca de solução.

Disse-lho com rodeios, num fraseado que o não agastasse, mas no íntímo parecia-me aquilo extrema ingenuidade ou tontaria. Ninguém em seu juízo esperaria encontrar na Holanda interessados em financiar uma eleição corrupta num longínquo estado brasileiro. Além de que seria imoral, ilegal, sei lá!...

Ele ouvia com uma expressão amável, sem me interromper, mas quando voltou a falar derrubou dum só golpe as certezas do meu moralismo. E não precisou de mo dizer, li-lho nos olhos: ingénuo e tonto era eu.

A razão da sua vinda de modo algum tinha a ver com financiadores, mas com dinheiro. Viera para comprar dinheiro, dinheiro falso, pois os seus mandatários tinham tido informação segura de que com facilidade o poderiam mandar fazer na Holanda.

O impulso que me tomou foi de fugir. Só que ali, na sala de jantar do Hotel des Indes, rodeado de gente chique e pessoal atento, o deitar a correr não era opção viável. Fora isso sentia-me picado de curiosidade. Fiquei.

Continuámos a sobremesa, tomámos café, bebemos conhaque, acendi o charuto que me ofereceu. A conversa voltou ao dinheiro falso. Ele estranhou que, conhecendo tanta gente em tão variados meios, eu não estivesse ao corrente. Mas enfim, ia telefonar, informar-se. De qualquer modo havia de conseguir. Depois mo diria. E num tom brejeiro, a acentuar a sua descrença na minha incapacidade afirmou que, embora eu não pudesse ajudá-lo, se sentia feliz por termos reatado os laços da nossa velha amizade.

Abraçámo-nos na despedida. Efusivo, deteve-me ainda um momento. Ficasse certo que mal o seu candidato fosse eleito mandava bilhete de avião, e convite para que eu assistisse aos grandiosos festejos que se iam fazer em Maceió, a capital. E não ia precisar de hotel, não! Ele próprio cuidaria que me instalassem no palácio do governador! Uma semana, o tempo que me apetecesse. Com motorista às ordens.

Sorri, habituado a receber dos meus amigos brasileiros convites mirabolantes que, por um motivo ou outro, sempre se desfaziam nas suas memórias com a ligeireza das bolas de sabão.

Tempos depois, apoiado por votos comprados com dinheiro verdadeiro ou falso, o candidato a governador do estado de Alagoas ganhou a eleição, prolongando-se por dias os festejos da vitória, a que infelizmente não assisti. E do homem que solenemente me prometera o convite nunca mais tive novas.