Será trabalho da memória, desarranjo do subconsciente, talvez uma ligação defeituosa no cérebro ou o equivalente mental de um despejo, o caso é que por vezes e sem razão que descubra, revivo situações em que de repente, como que perco consciência do tempo, o que é velho de décadas de súbito torna-se actual, muito vivo, acontece de novo com uma realidade que assusta.
Em meados de Junho passado, no mais prosaico dos ambientes, a esplanada do café da vila, vi-me transportado para um escritório onde há mais de sessenta anos trabalhei. Chamem-lhe alucinação, estado febril, tolice, fantasia, o caso é que “aquilo” se sobrepunha à realidade que me cercava, e eu inteiro, cabeça, tronco e membros, tinha diante o Abílio Fagundes Cunha, então o meu chefe, carioca de gema, e pela enésima vez ouvia-o queixar-se que, certo e seguro, a humidade e o frio da Holanda haveriam de ser a sua morte.
Não vou pretender que Santo António, o mais carinhoso dos santos e muito da minha devoção, me favorece com o dom da ubiquidade e, ainda por cima, me deixa reviver em simultâneo dois tempos diferentes, mas mesmo correndo o risco de que me julguem tarado, também não posso negar a veracidade do acontecido.
Digamos então que de seguida, julgando encerrar a memória dessa bizarra vivência, voltei ao ramerrame: a sucessão de rotinas, xaropes, pílulas, e cerca de um mês depois, uma noite de insónia vejo-me a “folhear” na internet a edição de O Globo, o grande jornal onde na minha remota juventude escrevi com ligeireza sobre assuntos que julgava entender. Folheando, parando aqui, ali, porque a língua do Brasil muitas vezes me surpreende, chego à Necrologia e literalmente caem-se-me os queixos: sob um retrato que deve ser da sua meia idade, é anunciado o falecimento do antigo diplomata Abílio Fagundes Cunha (1918-2022).