domingo, julho 24

Intervalo

A partir de hoje e até data incerta este blog não terá actividade, razão para mais um extracto do prefácio.

“Entre Miranda e o Pocinho, ainda há pontos onde se pode admirar a braveza da corrente, e foi essa a razão que há bons quarenta anos me levou ao Picote, curioso de ver o que a barragem construída em meados da década de cinquenta teria mudado.

Não seriam dez da manhã quando cheguei à aldeia, mas não atinava com o caminho e quando vi o que me pareceu ser uma taberna entrei, dei os bons-dias às duas pessoas que ali estavam: um velho encostado ao balcão, do outro lado a taberneira, mulher de meia idade, cada um com seu copo de vinho, ela ainda a segurar a caneca com que os tinha enchido.

O caminho, disseram eles, não tinha nada que saber, era por ali abaixo e sempre a direito, mas já agora do forasteiro esperavam que lhes dissesse de que terra era, ao que vinha, e por cortesia aceitasse um copo.

Encheu-mo a mulher, bebemos à saúde, disse eu que queria ver a barragem, hora e meia depois ainda ali estava, porque à palavra barragem o idoso desatou a falar, assim a modo de quem carrega um fardo de injustiças mais pesado do que o que tantas vezes cabe aos pobres e dele se quer aliviar.

Em momento nenhum o interrompi ou comentei, tanto por ser impressionante o relato, como pela surpresa de ouvir alguém que, não obstante o vocabulário limitado, possuía talento para de tal maneira contar as suas vivências que a certo momento eu já não o ouvia, mas "via-o" com centenas doutros subir os andaimes, carregar ferragens, bidões, sacos de cimento, sofrer o frio e insultos, rogar pragas, aceitar o risco para um aumento de tostões, dizer "Sim senhor" ao capataz filho-da-puta que os empurrava para que não parassem.

Com gestos, com sussurros e imitações, a raiva nos olhos ou fingindo aceitar aquela escravatura, o homem dava a impressão de tudo reviver, e eu, em parte pelo fascínio da maneira como ele contava, mas também com pena de o interromper à bruta, não sabia como me despedir.

Acudiu-me a taberneira, dizendo-lhe que se calasse, já chegava, porque se para mim era novidade ela já ouvia aquilo há mais de quarenta anos. Pelos copos nada tinha a pagar, fosse com Deus, mas se calhar com tanto palavreado já me tinha esquecido. O caminho era por ali abaixo e sempre a direito.”