domingo, julho 17

A vocação da escrita

 

Fantasiar histórias tem o seu quê. Não o digo eu, que ando nisto há uma vida, e a minha vai longa o bastante para temperar arroubos, ouviu-o ao Diogo, jovem que anos atrás decobriu o que chama a vocação, e as mais vezes o diz dum modo recolhido, à maneira dos que se julgam chamados a servir o Senhor.

Como a poucos é dado ganhar o pão nosso de cada dia fantasiando enredos, resignou-se ele ao resultado da cunha do padrinho médico, vai em dois anos trabalha ao balcão da farmácia Andorra. Como nos ditados há sempre uma ponta de verdade, no caso do Diogo confere que “quem não arrisca não petisca”, e assim o emprego, que imaginou seria o Purgatório, mostra-se uma mina de inspiração, pois enquanto avia as receitas os clientes insistem em detalhar situações bizarras, dramas com princípio, meio, e às vezes um desfecho que leva a pensar nos filmes de horror.

No começo não reparou, confessa que o aborrecia ouvir tanto sofrimento, aqueles casos de doenças, dramas, vidas onde nada corria bem, às vezes gente na força da idade e já sem ânimo para enfrentar reveses.

Mas uma noite de domingo, quando pela enésima vez se esforçava por tornar credível o final da uma novela, de súbito recordou as queixas do senhor Leonardo sobre a filha mais nova, a Júlia, e a maneira refinada como a rapariga, fingindo-se doente o depenava, exigindo pílulas e cremes que só havia no estrangeiro e a farmácia tinha de encomendar.

Como por inspiração, de súbito ocorreu-lhe o que seria o perfeito remate, e nesse instante só não gritou “Eureka!” porque a Alice já dormia, mas numa excitação infantil foi para a janela, vitorioso, contente, de braços erguidos como o jogador que marca um golo.

Quando deu por si estava a reler o final que o entusiasmara e agora lhe parecia uma baboseira, confirmando que fantasiar histórias tem o seu quê.