domingo, julho 10

A memória não é tudo

Se a grande fama não cabe a todos há quem seja admirado, não por se distinguir com um feito heróico ou acto benemérito, sim porque possui em alto grau uma qualidade que muitos invejam, mas poucos cultivam, preguiçando na desculpa de que não a têm nos seus genes, ou lhes falta o tempo e a perseverança.

Na realidade são desculpas de mau pagador, porque o que torna o Zeferino modestamente famoso no círculo das suas relações é uma qualidade que à primeira vista se encontra ao alcance de todos, a menos que sejam fracos da cabeça, ou pertençam àquele tipo de gente azeda que de tudo desdenha.

Conhecem-lhe a excelente memória, que mesmo aos oitenta e três continua sem falha, mas há sempre alguém com a mesma idade e capacidade idêntica. A diferença está em que no seu caso quase se assemelha a um número de circo, pois se por exemplo, passados anos encontra um vago conhecido, é capaz de o surpreender, disparando uma curiosidade que estonteia o interlocutor:

- O seu netinho, o André, já terminou Direito?

Apanhado de surpresa o pobre arregala os olhos, perplexo de que o Zeferino saiba que tem um neto e até recorde do nome, mas casos desses são sem conta, e passados de boca em boca, às vezes exagerando, valem-lhe uma reputação a que, guardadas as devidas proporções, se pode chamar fama.

Não se vá, porém, julgar que o nosso amigo tem uma memória incomum. Bem ao contrário. Só que é incansável em anotar e reler, e isso em extremos para que poucos de nós temos tempo, paciência ou feitio.

Contudo, também aqui não há bela sem senão, pois se mantém, e em permanência consulta, as anotações que formam o alicerce da sua fama, o Zeferino descuida o aspecto doméstico. Para a família é um cabeça no ar, e como três anos seguidos esqueceu a data do enlace e o aniversário da D. Aninhas, desde 2014 dormem em quartos separados.