Poderá um galo tornar crítico um agravo doméstico? E esse tão penoso que leve um casal de meia idade a reconsiderar o que sente? No caso de Elvira e de Daniel pode, tanto mais por serem contrários no temperamento: ela expansiva e calorosa, ele frio, reservado que nem um sueco.
O quintal é espaçoso, há ali fruta, flores, horta, uma capoeira enorme, onde os antigos proprietários tinham umas cinquenta galinhas e ainda mais coelhos. Para eles, contudo, aquilo dava um trabalhão, pelo que se tinham desfeito da bicharada, deixando as galinhas precisas para os ovos e uma cabidela de vez em quando.
Meses depois o galo começou a ficar morrinhento, e apareceu morto. Saudades não deixava, tinha um cacarejo de constipado e galava mal, as galinhas punham uns ovitos de perdiz.
Veio então um, que ao vê-lo os deixou de boca aberta, pois das garras à crista o bicho era espectacular, até no cocoricó se mostrava um galo de alto lá.
Elvira cuidava da capoeira, mas nessa manhã, por ser o saco da ração pesado demais, tinham-no levado ambos, foi assim que pela primeira vez Daniel viu como o “Casanova” tratava o seu harem. Nada de cantorias, rodeios, asa a arrastar: ao vê-lo perto já elas se agachavam, dois, três segundos passava à seguinte, bruto com algumas e quase as esmagando
Ambos a olhar calados, fingindo que não viam nem o espectáculo os interessava, e logo depois, cada um por seu lado voltaram a casa.
Acabavam de almoçar, quando Daniel reparou que Elvira hesitava, mas só mais tarde, já a arrumar as xícaras, os olhos baixos de quem se assusta da ousadia, conseguiu dizer:
- Não podemos continuar assim. Sou muito infeliz.
Com o modo sarcástico que os seus alunos temiam, Daniel pareceu hesitar, recompôs-se, a voz quase amistosa: - Infelizes somos todos, Elvira. Todos.