quinta-feira, março 17

Fingimento

 Se as nossas ideias e sentimentos fossem de pano, poderíamos dar-nos conta de como são toscos os alinhavos com que neles prendemos os preconceitos. Mas não é o serem toscos que lhes diminui a resistência. Bem ao contrário. Em certos aspectos parece mesmo que o que pensamos e sentimos revela apenas a prepotência das ideias feitas – aberração igual à da linha que se tornasse maior que o tecido. Mas como a natureza humana não muda, sempre as coisas assim foram e continuarão a ser.

 Embora pareça contraditório, estas sombrias lucubrações são-me ditadas pelo facto de que, no mês que amanhã começa, uma boa parte do meu tempo será dedicada a festejar aniversários. E que isso, mais a atenção que de bom ou mau grado se tem de dispensar às festas da época, faz com que Dezembro seja para mim um mês de mau humor e azedume.

 Não sei donde vem a fábula de que, fora uns acessos poéticos de melancolia, nós portugueses somos gente alegre e festejeira. Na verdade, e ao invés do que se passa consigo, os meus compatriotas e eu regra geral não sabemos festejar bem os aniversários. Não quero pretender que uma festa de anos à holandesa se me assemelhe um ponto alto no convívio humano, mas a verdade é que, na minha experiência, os aniversários à portuguesa são ocasiões sombrias. E talvez porque neles se beba menos, as conversas infalivelmente recaem sobre as enfermidades que nos afligem e os desastres que nos esperam. As festas tradicionais de Dezembro passam-se num ambiente semelhante, agravado pelo pensamento de que perto do nosso conforto certamente haverá gente com fome e frio.

Tempos atrás, temendo que as minhas impressões mais não fossem que preconceitos gerados pelo azedume, aproveitei uma reunião de amigos para fazer um pequeno inquérito. E todos, mesmo aqueles de temperamento bonacheirão, tinham descrições atrozes para contar: festas de aniversário de uma monotonia norueguesa (preconceito!), ceias de Natal que tinham degenerado em ódios eternos, noites de Ano Novo de que só se falava em murmúrios, tão dolorosa era a memória delas.

Evidentemente que teria havido momentos de confraternização, que se teriam trocado sorrisos e votos de felicidade, mas a memória guardara apenas o horror. E alguns, que conheciam a Holanda por aqui terem estado, eram de opinião que o aniversário festejado à holandesa, São Nicolau (que nós não conhecemos) e mesmo a ceia de consoada (embora sem o bacalhau tradicional), a noite de Ano Novo, eram mais divertidos e mereciam preferência sobre os nossos funestos costumes. Dos dias de anos nos tempos de criança tinham algumas recordações felizes: a expectativa confirmada de um presente, a abundância de doces e guloseimas. Eu próprio recordei que no meu aniversário era sempre servido o prato então meu favorito: frango assado no forno, com batatas, seguido de pastéis, vinho do Porto e café. Mas era isso bastante? Nós concordámos unanimemente que não era.

Um dos presentes, solteiro, homem de meios, dava a impressão de à medida que nos ouvia se ir afundando num humor melancólico. Entre a sua gente, disse ele, nunca se tinha festejado um único aniversário. Por acaso dias antes, na proximidade dos seus sessenta e quatro anos, assinalara à mãe essa estranha frieza familiar. E ela, quase centenária, tinha-lhe retorquido azeda:

Do que te queixas? Querias que te fosse agora dar bonecos, a ti, um velho? Tem vergonha na cara!

O que por momentos nos fez silenciar é que nós sabemos e ela ignora que o quarto do filho se assemelha a uma imensa loja de brinquedos