terça-feira, fevereiro 22

Tempo de festa

 

O êxito da Revolução de Abril fez explodir por entre a juventude da Europa rica ondas de entusiasmo. Essas, porém, tinham menos a ver com o ter-se libertado o pobre Portugal do jugo que o afligia, do que coincidir o acontecimento com o espírito festivo e libertário iniciado em finais da década de 60, e o qual, nesse momento, como que alcançava o apogeu.

Logo desde as primeiras horas, os holandeses certamente se contaram entre os mais entusiastas dos prosélitos da Revolução dos Cravos. E idem dos mais fundamentalistas. Bons eram os que, incondicionalmente, sem reservas, cantando e rindo, abraçavam a chegada da liberdade ao martirizado país. Quem viesse com interrogações e dúvidas, era relegado para a asquerosa categoria dos inimigos da Revolução. Ou pior: para a dos pobres de espírito, aqueles a quem faltava tino para compreender a beleza da aurora revolucionária, e se mostravam incapazes de berrar em uníssono que o sol passaria a brilhar para todos nós.

Em ambas as categorias me encontrei eu. Situação inconfortável na universidade, onde os fariseus eram legião. Situação ainda pior junto da chamada imprensa da esquerda, na qual tinha colaborado e onde, de um dia para o seguinte, me vi ostracizado, posto de lado como cão tinhoso.

Felizmente, esses percalços não me causaram mossa de maior, nem perturbaram demasiado o sono. Contribuiram, sim, para agudizar o meu sentimento de não-pertença, ou aquilo que anos mais tarde, ao escrever sobre a minha situação na Holanda, um crítico inglês descreveria como “the seldom commodious situation of an outsider inside.

Compreendi, aceitei, observei, consegui mesmo extrair algum proveito do desconforto. Assim, os jovens e menos jovens revolucionários holandeses que partiam em bandos a ajudar a colheita de tomates no Alentejo, ou a levar o evangelho marxista aos idosos de Trás-os-Montes, tornaram-se-me objecto de estudo.

Certamente os havia sinceros nas convicções e ingénuos no comportamento. Sempre os há. Mas esses eram poucos e desinteressantes.[1] O foco da minha atenção ia para os que berravam slogans acompanhando-se à guitarra, os de cabelo mais longo e vestuário hippie. Esses iam animalmente para gozar, beber, cozer a pele e a bebedeira nas areias do Algarve e arredores. Entrementes erguiam o punho, davam abraços, debitavam alegres os hinos da revolução e os slogans do momento: o povo é quem mais ordena, a terra a quem a trabalha, unidos venceremos, camaradas àvante, a luta continua...

Cumprido esse dever voltavam à bebedeira, e hoje provavelmente efabulam aos netos as andanças heróicas em que participaram e a solidariedade que sentiram ao contacto da pobreza alheia.

Delas, as revolucionárias, guardo a lembrança de nas soalheiras do Alentejo as ter visto de mini-saia e mamas ao léu. A colher tomates, omo tinham prometido. E até a participar nas sonolentas reuniões em que os quadros explicavam às massas a felicidade que as aguardava. Mas as jovens holandesas, fora o desejo de auxiliar o proletariado, traziam na bagagem outras e bem mais generosas intenções missionárias. Os pobres campesinos, como elas gostavam de lhes chamar, fora as privações materiais, certamente sofriam com a repressão da Igreja. Deprivados há séculos de um comércio sexual adequado, eram eles, se não “almas”, corpos a necessitar de salvação e satisfação.

Sobretudo no Alentejo, as jovens e menos jovens holandesas deitaram-se a fornicar o proletariado com um entusiasmo que deixou fama. E seja dito: trinta anos passados, ainda se encontram  anciãos alentejanos que rebolam os olhos ao recordar esse gostoso tempo.

Para as raparigas o acto era polivalente. Num ambiente revolucionário e longe de tutelas, podiam alargar ainda mais os limites da liberdade a que estavam habituadas. Encontravam também as satisfações novas que dava o exotismo da situação. E, last but not least, um testemunho da cooperativa revolucionária, a confirmar a participação em tarefas de solidariedade e desenvolvimento, era  excelente achega para o Curriculum Vitae.

Hoje, quando a televisão me mostra os jovens que partem por quinze dias para os quatro cantos do mundo, a levar ajuda aos deserdados e aos inválidos, já não julgo nem ironizo, só sorrio. Quando os oiço confessar francamente que também fazem aquilo para valorizar o seu CV, louvo-lhes a franqueza. E, se estou em maré de introspecção, costumo perguntar-me como os julgaria se, em vez de ser o holandês adoptivo que sou, um que escolheu pertencer, partilhasse com eles as mesmas raízes.

É incómoda e fatigante essa permanente interrogação. A compulsiva necessidade que me martiriza como alóctone, de constantemente querer determinar se a minha visão é exacta, se o meu juízo é justo, se a minha ironia e o meu veneno permaneceriam idênticos caso fosse um deles pelo nascimento.

De modo geral, meio século deveria ser tempo suficiente para que um indivíduo fosse capaz de determinar a sua identidade, estabelecer os parâmetros da sua existência e conseguir uma relativa paz nas suas relações com o ambiente em que funciona."

in A ira de Deus sobre a Europa - Quetzal, 2016