quarta-feira, fevereiro 23

As "entradas"

 

Dali a tempos recebi novo papelinho, em que se me mandava que num domingo de Agosto, pelas cinco da tarde, me apresentasse no Hospital Militar do Porto, onde depois de exames médicos mais demorados se decidiria do meu destino. Que no mínimo contasse com uma semana.

Porquê às cinco horas de um domingo? Porquê uma semana inteira? Mas os papéis são mudos e nesse tempo longínquo e autoritário, em que as ordens eram dadas para a elas se obedecer, estava fora de questão pedir explicações sobre o que quer que fosse. De modo que, vestido com o meu belo fato azul escuro de três peças, lenço de seda no bolsinho, corrente de ouro sobre o colete, levando na mão uma mala com livros e mudas de roupa, entrei no hospital à hora marcada e apresentei a convocatória ao cabo da portaria.

Sonolento, acabrunhado pelo calor do dia, o homem devolveu-me o papel sem sequer o abrir, disse que era ao fundo do átrio, a porta da esquerda, e começou a bocejar, esfregando lentamente os olhos. Do lado esquerdo havia três portas e bati em todas umas pancadas discretas, mas sem obter resposta. Estava a ponto de dar meia volta, quando uma delas se abriu de repelão e um sargento idoso, gorducho, os olhos injectados de sangue, em mangas de camisa e a abotoar desajeitadamente a braguilha, me perguntou de mau humor o que é que eu queria.

Estendi-lhe o papel, entrámos na sala, ele foi sentar-se atrás de uma escrivaninha, fiquei eu do outro lado, em pé, segurando a mala.

 – Sentido! – mandou ele, ao mesmo tempo que punha os óculos para ler.

Porque ainda não sabia que aquilo era uma ordem, fiquei como estava e com certeza sorri, o que o homem deve ter tomado por rebeldia ou insulto, pois doutro modo não explico a brusquidão com que se levantou e, ameaçador, me tirou a mala da mão, me esticou os braços, fez unir as pernas e afastar a ponta dos pés, levantar a cabeça, deixando-me imóvel como um espantalho, mas na posição devida.

Eu não estava ali para me rir dele, nem de ninguém, nem de coisa nenhuma! Eu estava no Hos-pi-tal-Mi-li-tar! E se não tinha aprendido a obedecer aos superiores, ia ele ensinar-me em menos de três tempos, ó se ia!

Este intermezzo buffo poderia ter durado, porque o homem não era presto a conferir o nome, a data de nascimento, a filiação, a morada, e soletrava esses dados à medida que os ia copiando do papel para um grande livro de registo. Mas para meu alívio a porta abriu-se, e o ordenança encarregado das «entradas», rapaz despachado, saudou o sargento com uma continência breve, e acenando para que eu o seguisse tirou-me daquela incómoda postura.

Na arrumação onde entrámos estavam sobre uma mesa dois montes de roupa: tamanho grande, tamanho pequeno, e foi aí que troquei o meu belo fato novo por um repelente uniforme de tecido castanho e grosseiro, tamanho grande, porque o pequeno, que deveria ser o meu, tinha minguado tanto nas lavagens que se diria roupa de anão.

À jaqueta faltavam os botões, e as calças, de tampa à frente, com feitio de cueiro, eram atadas por um cordão demesurado que dava três voltas à cinta. Para a cabeça recebi uma manga branca que, enrolada, tomava o aspecto de um barrete de marujo, e era obrigatório usar. Duas camisolas, duas cuecas, um cobertor, dois lençóis e duas travesseiras, duas toalhas, dois lenços, um par de alpergatas. Meias só havia para os que sofriam de reumático.

 O meu fato e a minha roupa interior desapareceram num saco de lona, a caminho da desinfecção. Depois, porque o barbeiro ao domingo não estava, ele próprio se encarregou de me rapar o cabelo. Dali fomos para um quarto de banho onde, sentado num escabelo e de cigarro aceso, controlou se eu realmente ficava debaixo do chuveiro e me ensaboava como devia ser, pois pelo que contou havia alguns que tinham medo de sufocar, e outros que se esqueciam de «ensaboar as partes».

De mala na mão, a arrastar as alpergatas que se me escapavam dos pés, irreconhecível para mim próprio naquele desmesurado uniforme de penitenciário, fui com o ordenança por corredores longos, estranhamente desertos, surpreendentemente frescos.

Aberta a porta da enfermaria entrei noutro mundo. A sala era enorme, com quatro fileiras de mais de vinte camas cada, um tecto alto sustentado por colunas, janelas de convento. Entre os extremos de rapazes prontos para a recruta, doentes de verdade, ou como eu simuladores, e veteranos gaseados da guerra de 14, havia ali todas as idades, todas as moléstias. Reinava um ambiente em que à animação de praça pública se misturava uma desordem de acampamento, a algazarra dos botequins, o horror de uma Cour des Miracles, e mais.

Os válidos entretinham-se a beber, a fumar, jogavam as cartas a dinheiro, faziam piqueniques em cima das camas com a comezaina trazida pelas visitas. Junto de uma janela começara uma zaragata e ouviam-se ameaças de socos. Alguns perseguiam-se a correr por entre as camas, com uma alegria infantil, enquanto outros gemiam ou tossiam cavernosamente, examinando assombrados os escarros que cuspiam nos lenços. Viam-se corpos a tremelicar, membros chaguentos, rostos emaciados, rostos com os olhos brilhantes e fixos das grandes febres. Aqui e além pendiam ligaduras ensanguentadas. Pelo chão arrastavam-se pedaços de jornais, caroços, cascas de frutas, flocos de sujidade, pensos velhos. Pairava sobre tudo um ar tornado pegajoso e morno pelo cheiro do suor de corpos doentes, dos penicos cheios, unguentos, fumo de cigarro, creolina, restos de comida.

Mais ou menos a meio da enfermaria o ordenança apontou uma cama vazia, recomendando que a fizesse depressa e me deitasse, porque o sargento não demoraria a rondar. Ter de fazer a cama também não me parecia natural – imagine-se que eu tivesse chegado ali com os braços partidos ou às portas da morte – mas porque raio me tinha de deitar?

O ordenança perdeu a paciência. Já agora ficava eu a saber que cada «entrada» tinha de passar as primeiras vinte e quatro horas na cama. O regulamento era assim e ele não estava para ter discussões comigo, nem queria chatices com os superiores.

A barulheira acalmou quando o sargento apareceu à porta e os olhos foram-no seguindo até que parou junto de mim e quis saber se o ordenança me tinha posto a par do regulamento.

 – Pôs sim senhor.

– Pôs sim senhor, meu sargento! – troou ele.

– Pôs sim senhor, meu sargento – ecoei eu.

Aquilo devia ser gracejo costumeiro, porque se ouviram risos de aplauso e ele continuou a ronda sem voltar a ocupar -se comigo, vigiando os dois serventes que empurravam o carrinho da comida e, apressados, um de cada lado, iam enchendo os pratos para os doentes. Menos para mim. Porque as «entradas» – explicou um vizinho – nas primeiras vinte e quatro horas, além de ficar na cama faziam dieta, só tinham direito ao «caldo de pomba». Pouco importava do que sofressem: no começo o descanso e o jejum eram obrigatórios.

O sargento rondava dia e noite para se assegurar de que as «entradas» se não levantavam, pobre do que fosse apanhado em pé ou de boca cheia, pois não lhe custava nada atirar com ele para o «isolamento».

«Caldo de pomba» era o nome irónico de uma canja de galinha, fria, com gosto a sabão, que me aliviou a sede, mas tornou mais aguda a fome. Essa tortura, porém, não se comparava à de sentir que a bexiga se me tinha dolorosamente enchido e que, de um momento para o outro, os intestinos ameaçavam esvaziar-se. Ao mesmo tempo ultrapassava as minhas forças pegar no penico e ali em público fazer as necessidades.

Com o anoitecer a agitação foi diminuindo. Tornou-se mais distinto o gemer dos que sofriam, e as gargalhadas que antes tinham parecido divertidas soavam agora ameaçadoras, um ou outro soluço criava expectativas de mau agouro. Às onze apagaram-se as luzes, ficando apenas sobre as portas a claridade baça dos veladores.

Desesperado, indiferente a um eventual castigo, deitei a correr para a retrete, perseguido pelas gargalhadas dos que me viam passar. O não se poder levantar a gente, disseram-me depois quando voltei para a cama, não era do regulamento, era só «brincadeira» do sargento p’ra «chatear as entradas».

 (Excerpto de O Hospital Militar in Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia - Quetzal,2011)