terça-feira, fevereiro 1

Fernando Peixoto (1947-2008)

 

Nenhum outro lugar se prestaria melhor a encontrar pela primeira vez Fernando Peixoto do que o seu gabinete na Junta de Freguesia de Santa Marinha, em Gaia.

No rés-do-chão, na escola das Palhacinhas, tínhamos tarimbado em épocas diferentes, mas com recordações semelhantes, umas de gentes, muitas as dos lugares. Em poucos minutos já não éramos os senhores estranhos que dali a pouco iriam participar numa cerimónia, mas dois garotos apressados a reviver isto, a lembrar que também tinham visto aquilo, corrido nas mesmas vielas e na Rua Direita, espreitado na loja do Facal, na mercearia do senhor Ramos, na farmácia, cortado o cabelo no mesmo barbeiro, mijado contra a mesma esquina.

Ia eu falar do convento da Santa Maria Adelaide, já ele me cortava o discurso com uma história do Fluvial. Tinha eu tremido à vista da cabeçorra de São Gonçalo? Levava ele a melhor, que muitas vezes acompanhara os mareantes. Mas de seguida marcava eu pontos: em 1947 assistira ao fogo de artifício mais espectacular de memória de vivos e mortos. Noite de São João. Desde a Calçada das Freiras até à ponte, a margem de Gaia a arder com o foguetório dos Fernandes de Lanhelas. Eu a suar com os fogueteiros, que eram nossos vizinhos, chegando-lhes as mechas. Labaredas, figuras de anjos e bichos, rodopios, estrelas, bouquets, bombardas!... A Serra do Pilar iluminada que nem Roma nos tempos de Nero!

E onde estava você, Fernando Peixoto? A espernear no ventre materno! Ainda com um mês de espera antes de poder abrir os olhos para aquilo que há dezassete anos me maravilhava. Que depois, felizmente, seria de nós ambos e dos outros muitos que nasceram nos mesmos largos e vielas. Que por ali se fizeram gente. Os que ficaram e os que não resistiram ao bruxedo das águas do Douro e, tentados por elas, se foram a correr as sete partidas.

O Fernando também foi. Obrigado pela loucura dos que julgam que a história dos povos pode ser obra de uma só cabeça. Não pode. Mas dessa sua viagem à África não falámos. Era mais fácil falar das minhas, porque nelas não houve chacinas nem traições.

Quando chegou a hora da cerimónia voltámos a ser dois senhores. Mas logo depois veio a amizade, e com ela a troca de livros, as provas de apreço mútuo.

 

Manda a tradição, manda o ritual, pedem-no o sentimento e a solidariedade: quando alguém falece testemunha-se a dor, dizem-se palavras de pena. Todavia, para os do seu sangue não serão as palavras e os testemunhos capazes de compensar da perda. Assim as minhas ficarão no íntimo. Só direi que Fernando Peixoto nos deixou demasiado cedo. A mim não me deu ocasião nem tempo bastante para lhe contar do Irilo, do Patas, da Cavalinha, de como era o São João no Monte (dos) Judeus, a Gaia da minha infância.

Mas tempo chegará, e lá nos encontraremos, porque todos fazemos a mesma viagem com igual destino.