domingo, março 28

Engenharia Alimentar

É tempo perdido  comparar as circunstâncias actuais com as de há trinta ou quarenta anos, pois em quase tudo, talvez mesmo em tudo, são por vezes tão drásticas as mudanças que por muito que uma pessoa se informe, tente manter-se ao corrente, há sempre uma ocasião em que, por ser fundo o choque, aquele que o sofre tudo faz para dissimular as consequências, não lhe repugna o sentir-se hipócrita porque seria demasiado alto o preço a pagar pela franqueza.

Esmeralda, a mais nova das três filhas do Gomes, logo de pequena se mostrou diferente das irmãs: teimosa, chorona. embirrenta, continha-se para não lhe dar um safanão, porque da única vez que o tinha feito veio a casa abaixo, a Armandina e a sogra aos gritos contra ele, as irmãs numa choradeira, a merdinhas agarrada à mãe, a olhá-lo de esguelha com cara de crucificada.

Na adolescência continuou difícil, mas pouco a pouco foi mudando, para surpresa de todos quase se tornou no oposto do que tinha sido. Ao contrário das irmãs, Tânia uma bloquista rabiosa, Sofia fanática do veganismo e do clima, Esmeralda é hoje o tipo acabado da boa rapariga à moda antiga, calma e minuciosa no que faz, cumpridora do que promete, será preciso muito para que se exalte e perca aquele ar de santinha.

Essas qualidades dão nas vistas e assim já por várias vezes amigos do Gomes lhe tomaram o pulso, dando a entender que veriam com bons olhos se um filho a escolhesse para nora. Em dois ou três casos o próprio Gomes seria o primeiro a aplaudir e tudo faria para, como ele à sua maneira diz, "ver a filha bem arrumada". Infelizmente, nesse ponto e para amargura dele, que gostaria de se ver compadre do Baptista das ópticas, há coisa de mês e meio a Esmeralda anunciou que tinha um namoro a sério, pensava mesmo em casamento, se estivessem de acordo no domingo seguinte convidava o rapaz para jantar, ficavam a conhecê-lo, iam gostar dele.

- Chama-se Miguel e é engenheiro! – acrescentou ela, como que a assegurá-los de que não haveria más surpresas.

- Será o que Deus quiser – disse a Idalina quando a filha se despediu - O do Baptista seria melhor, mas um engenheiro arranja sempre emprego.

Não foi um sucesso. Arrogante no modo, o Miguel respondia em frases curtas e sem olhar para quem falava. Sim. Era engenheiro. Tinha o curso de Engenharia Alimentar.

As despedidas foram um mau teatro e já estavam na cama quando o Gomes finalmente  desabafou: - Esperavas um da electrónica, sai-te um engenheiro da comida que de certeza nem cozinhar sabe.