segunda-feira, março 15

Agora que vem aí a bazuka

 "Outra reflexão que me ocorre sobre o auxílio aos países pobres - o eufemismo “países em desenvolvimento” é o fatinho de domingo a cobrir as chagas da miséria - é que ele parece incluir um curioso elemento de afastamento geográfico, como se entre a “caridade” e a distância se pudesse estabelecer uma relação. A menos que essa relação se estabeleça entre a “caridade” e outros factores que se não discernam à primeira vista.

Note-se: geralmente, na vizinhança dos países ricos e que dão, há países pobres a precisar de receber. Alguns, mau grado o seu tamanho e orgulho, conhecem misérias atrozes, iguais e por vezes até piores do que as desses países longínquos onde regularmente cai o maná.

- Será por terem governos ditatoriais?

- Não deve ser. Que dizer de alguns países sul-americanos e asiáticos, ou das terras africanas onde, com a desculpa de que se trata de velhas rivalidades tribais, e portanto aceitáveis, facilmente se decapitam os oponentes entre dois batuques?

Não. As desculpas políticas não servem. Aliás, em política, mais tarde ou mais cedo tudo se arranja, e nem é preciso conhecer a História, porque a evidência logo de manhã se lê nos jornais.

Eu direi, com a impressão de que pouco me engano: bem-aventuradas as nações que se “desenvolvem”, pois para eles está reservada a ternura dos ricos. Pobres das outras que, vizinhas, mas esgotadas, não se podem sequer opor ao aluguer dos seus filhos e nada mais têm para oferecer em retorno. E então a gente tem de se vergar à áspera realidade: os auxílios de hoje, como os de sempre, pagam-se caro, os governos, como os bancos, emprestam e ajudam a quem oferece garantias e aguenta o juro.

Por isso eu, cidadão de país necessitado, dispenso a catequese, as boas intenções, as palavras de ternura. Pouco se me dá que seja em nome de Jesus, de Marx ou do Petróleo. Se me fosse possível aconselharia aos holandeses - porque afinal são ricos e tanto “dão” - o exame de consciência que elas gostam de recomendar a quem os ouve e é pobre.  Acrescentando que sim, certamente é possível transformar o mundo para melhor: quando se separar o comércio das boas intenções."

in Com os Holandeses - Quetzal, 2009