sexta-feira, março 26

Birdland

- Estás enganada. Foi em Paris.
- Não estou não. Hamburgo. No Birdland. Nunca tinha ouvido Stan Getz.
- Stan Getz? Vê se recordas. O programa começou com Chet Baker…
- Exacto. My Funny Valentine, mas depois…
Acabaram a sobremesa, pedem café, quando o empregado se afasta e ela faz menção de continuar, beija-lhe galantemente os dedos, como para evitar que continue. Um casal de meia-idade bate discretamente palmas, ergue os copos numa saúde.
O telemóvel toca, desculpa-se, atravessa a sala falando num murmúrio, seguido pelo olhar da senhora das palmas que depois a encara e articula qualquer coisa com exagero, em silêncio, conversa de surdo-mudo.
Acontece-lhes  tantas vezes, ultimamente. Discordâncias que ainda não são discórdias, mas criam um sentimento desagradável, aquele modo de parecer apostado em contradizer, contrariar, sempre a ter razão, a querer impor

Birdland. Um mar de gente, os desconhecidos que se tinham sentado com eles, Chet Baker a transformar My Funny Valentine num sublime lamento. A sala na histeria do aplauso.
Sentiu a mão na coxa, uma suavidade de dedos na pele que a minissaia deixava nua. Da mesma idade, olhos no palco, roçando os lábios no copo de cerveja como a procurar-lhes frescura, a rapariga ao seu lado, sonho ou droga, dir-se-ia  longe dali.
Ombro contra ombro. Um rapaz apoiou-se nela, saltou para cima da mesa. Palmas, gritos, assobios. Ele, excitado, continuava a aplaudir. Debruçou-se quando voltou a sentar-se, mas não deu atenção ao que ela sussurrava, nem ao gesto.
Um homem aproximou-se do microfone:
- Mr. Stan Getz! On Green Dolphin Street.
Carícias lentas, quase imperceptível o roçar de unhas, um toque mais ousado. Temerosa da  surpresa e da inesperada volúpia. Encararam-se, mas não se mediram, que da outra vinha a força que lhe quebrava a vontade, e incapaz de parar o tremor deixou que os dedos se entrelaçassem, mal deu conta que a estranha a puxava contra si. Beijo longo, fogo dos sentidos, choque, olhos cerrados, braços pendentes, o corpo a desfalecer. E no instante seguinte, quase entregue, o desnorteio de ver a rapariga erguer-se e sumir por entre a massa de vultos.

Ele volta, guarda o telemóvel.
- Quem era?
- O António. Parece que se amanhã não conseguirem…
Ouve-o, acena a concordar, mas a sua atenção perde-se.
- Vamos?
- Vamos.
Dá-lhe o braço e sussurra, a fingir de agastado:
- Tenho a certeza absoluta que foi em Paris, no Olympia. Parece que estou a ver o Chet Baker.
Ela volta-se e faz uma pequena vénia à senhora de meia-idade, leva a mão ao rosto, disfarçando o brilho das lágrimas, a compaixão que a toma de um dia se imaginar também assim: com ele no restaurante, silenciosos, erguendo os copos num brinde à felicidade alheia.