domingo, janeiro 31

Dás-lhe um dedo, leva a mão

Da internet aos automóveis eléctricos, do YouTube às sondas lançadas para Marte, a maravilha que é falarmos e vermos no telemóvel alguém que nesse momento se encontra noutro continente, o Bernardo é um desmedido entusiasta do progresso, vive na expectativa da descoberta de soluções que modifiquem de modo radical o nosso dia-a-dia. Se por exemplo começa a falar de telemóveis dá a impressão de que sem dois deles nem se respira, pobre do que lhe vier dizer que são complicados no funcionamento, esse leva uma desanda que o reduz à condição de analfabeto ou pobre de espírito.

Todavia, num aspecto, um único e esse é a sua paixão, a fotografia, se concede que são extraordinárias as qualidades das câmaras dos telemóveis, nada, mas mesmo nada chega aos calcanhares da Rolleiflex que herdou do pai, com a qual ele próprio considera ter já alcançado, pelo menos nos retratos a preto e branco um nível de profissional.

Os amigos ouvem-no, sorriem daquela vaidade, mas não estando presente são menos generosos, e se concordam que uma vez por outra os seus retratos mostram alguma qualidade, sentem pouco entusiasmo pelo plano de que tem falado, o de retratar alguns deles em casa, com a família, no que considerarem momentos de felicidade doméstica.

Acontece que o problema não está em serem retratados, sim no facto de que além de solteirão com hábitos peculiares, abrindo-lhe a porta é bico de obra conseguir que se despeça. E uma vez dentro sente-se em casa, vai pelos quartos, abre gavetas, pega em objectos, tira livros das estantes, rebusca aqui e ali, desarruma, espreita nos cantos. Então na cozinha nem vendo se acredita: mexe em tudo, prova, torce o nariz, falta isto e aquilo, a sua receita é melhor. Só que sentado à mesa mastiga com a pressa de uma fome de três dias, e claro que critica o vinho, porque não tem corpo, é demasiada a acidez, muito presente o tanino, mas duma garrafa passa a outra, da sobremesa nada fica, café quer sempre dois, mostra-se desapontado se não houver charutos.

Já quase todos tiveram com ele um caso, mas o do Martins leva a palma. Grande jantar de aniversário, na cozinha um chef de nomeada, dezasseis à mesa, um banquete. A certa altura Cidália sente-se mal, desculpem mas vai deixá-los, o Martins explica que é da medicação, nada de alarmante, continue a festa. Só que na hora da despedida o Bernardo tinha desaparecido. Foram encontrá-lo vestido e calçado a roncar na cama do casal, abraçado à Cidália, que toma Xanax em doses duplas.